terça-feira, 20 de julho de 2021

CONTOS DO VIGÁRIO #04

 

VIGÁRIO João

 

 

VIGÁRIO: do latim vicarius, título do pároco de algumas freguesias.

 

Desde a época da escola, João sabia que receberia as missões mais difíceis. De origem muito humilde, não foi fácil passar pelas etapas do seminário sem ser afilhado de alguém, ou ter fortuna de família; mas sabia que era esta a regra do jogo que conhecia bem desde o berço.

Portanto, estava exultante no dia da sua ordenação sentindo-se um vitorioso; e era de fato!

Foi designado para a paróquia de um lugar pequenino chamado Ituinaçu, que possuía meia dúzia de ruas, uma praça uma escola, um prédio público onde se amontoava tudo, duas vendas e a igreja. Nem ramal ferroviário tinha. – os mais debochados apagavam a cedilha do “c”: aí virava outra coisa! Para João nada disto importava, achava tudo de bom.

Logo no primeiro dia, com suas vestes ainda cheirando á goma do seminário, chegou á sacristia um casal de matutos para marcar o batizado da filhinha, um bebezinho lindo como um anjo. João se comoveu ao se lembrar dos seus pais, paupérrimos como aquele casal, que fizeram de tudo para lhe deixar de herança a educação que não tiveram. Então suspirou e perguntou: - Como será o nome desta adorável criança?

O homem sorriu a boca banguela e respondeu: - Nóis vamo juntá os nome das avó! A minha mãe chamava Eva, e a mãe da minha muié chama Gina. Entoces vai ser Evagina!

João tossiu de leve: - C... Como é?

- Evagina!

- Erh,... Não poderia ser Gina Eva?

- Uai, pruquê? Num pode? – perguntou a mulher.

- É! Purcá do quê que num pode? – reiterou o homem.

Que situação difícil; como explicar á aquele casal simplório que o nome escolhido para a filha referia ao órgão sexual feminino? Poderia constrangê-los.

- O senhor não gostou do nome? – novamente perguntou o homem. – Tão bunito!

Era preciso ser firme na argumentação e ao mesmo tempo diplomático na negação. – Bem; é um nome bonito, mas, deixe-me lhes perguntar algo: vocês são católicos?

- Craro padre! Somo tudo católico apostólico romano, eu e Catarina, minha muié!

- Hum, seu nome é Pedro; ah, o criador da Igreja de Deus! Vejo que tanto o senhor como sua esposa têm nomes de santos: Santa Catarina e São Pedro!

- É, padre! Nossas mãe eram muito católica também! – falou a mulher.

- Isto é muito bom; vejo também que estão felizes com seu lindo bebê. É a primeira filha?

- É! – respondeu Catarina. – Eu custei a pegar barriga, padre. Nóis rezamo muito pra vingá!

- Quantos dias ela tem de nascida?

- Faz hoje um mês justinho! – respondeu Pedro.

- Um mês. Deixe ver qual era o santo do dia do nascimento da menina? – buscou um livrinho pensando “só falta ser um daqueles santos de nomes esdrúxulos!” Mas não era: - Ah, ela nasceu em dezoito de agosto: dia de Santa Helena, que foi mãe do primeiro imperador romano que acreditou em Jesus Cristo, e se converteu ao Evangelho cristão, por influência de sua mãe, Santa Helena! Oh; atrevo-me a sugerir que deem a esta linda criança o nome de Helena em homenagem á santa, que assim será sua madrinha no céu!

Catarina pensou um pouco, e falou ao marido: - Que gozado; a vó da minha mãe chamava Helena.

Pedro respondeu: - O padre tem razão; vai dar boa sorte pra nossa fia! – o bebê riu. – Ó! Ela gostou!

João sorriu, pois conseguiu evitar que a pobre Heleninha viesse a ter muitos problemas pela vida, e partiu para marcar o batizado para daí a dez dias.

E assim o fizeram!

Mas as pendegas de Ituinaçu não terminavam aí.

Havia dois fazendeiros metidos á “coronéis”: um chamava Zé Maria e o outro Agripino, e eram inimigos em tudo que se pusesse imaginar. Na mocidade disputaram o amor de uma mulher, chegando ás vias de fato e até puxando armas um para o outro. Acabou que a mulher não quis saber de nenhum deles. Suas fazendas faziam divisa, gerando mais brigas e acusações de grilagem de terra. Depois se tornaram adversários políticos, alternando-se na situação e na oposição. Quando João chegou á paróquia de Ituinaçu, um afilhado de Agripino ocupava a prefeitura, enquanto que o presidente da câmara de vereadores era sobrinho de Zé Maria, com denúncias mútuas de fraudes nas eleições e roubos na prefeitura, o que acirrou ainda mais a inimizade. Os dois não escolhiam hora e nem local para suas discussões acaloradas, bastando estarem os dois no mesmo recinto.

Padre João fazia questão de manter a neutralidade, ficando ao lado da maioria da população de Ituinaçu, cansada daquelas brigas.

Porém, um casamento reuniu Zé Maria e Agripino na igreja matriz. Sentaram-se em lados opostos, mas trocavam olhares belicosos, pois de manhã já haviam se metido em mais uma discussão em público, precisando ser contidos para não se engalfinharem.  Os noivos já estavam no altar, e o padre fazia sua preleção, quando os dois começaram á trocar gestos de ameaça, exaltando seus ânimos de tal forma que sacaram suas armas, criando um tumulto sem tamanho na matriz com pessoas se abaixando e a noiva desmaiando! Então padre João largou o altar e correu à nave da igreja, se interpondo entre os dois, ficando na mira de suas pistolas e gritando: - Chega! Á onde vocês pensam que estão? Nos currais de suas fazendas ou naquele cabaré que tem na estrada? – levantou os braços: - Este lugar aqui é a casa de Deus! Um lugar aonde ás pessoas vem fazer orações em louvor ao Senhor, e não aos senhores que pensam serem deuses! – apontou á ambos. – Como vigário desta paróquia eu exijo respeito de todos que pisam neste solo sagrado! – apontou em torno: - Olhem as pessoas assustadas e indignadas! – apontou á noiva amparada pela família: - Era o dia mais importante da vida desta jovem, que vocês estão estragando! Será possível que não respeitam nada?

Zé Maria, ainda apontando a arma ao padre, respondeu: - O vigário não se meta em coisa que não sabe como começou!

- Agripino assentiu.

Padre João meneava a cabeça olhando para ambos. – Eu não sei como isto começou, mas sei como vai acabar! – e gritou: - Eu os proíbo de entrarem nesta casa enquanto não souberem o significado da palavra respeito! – ouviu-se a arma de Agripino engatilhando, quando começou uma vaia, no inicio tímida, que logo ecoou por toda a pequena igreja, entre assobios e gritos de “fora”. O padre encarou Agripino: - Abaixe isto. O eleitorado que elegeu seu afilhado não o está apoiando, e ano que vem tem eleição! – depois encarou Zé Maria. – E seu sobrinho, presidente da câmara, está de calças mijadas! – apontou ao homem que tentava disfarçar fechando o paletó. – Os dois abaixaram as armas, e padre João ordenou. – Agora; sentem-se ou saiam daqui para que o casamento continue!

Agripino e Zé Maria se sentaram e João voltou ao altar falando: - Sentem-se amigos! – dirigiu-se á noiva. – A senhorita está bem? Se quiser, podemos remarcar o casamento.

- De jeito nenhum, padre. – ela respondeu e o noivo se colocou ao lado falando: - Se for por falta de falar aceito; eu aceito! – houve um ligeiro riso, e a cerimônia prosseguiu. Zé Maria se levantou e saiu pisando duro. Agripino ficou mais um pouco, e saiu também.

Estavam furiosos e humilhados. Seu poder estava esfarelando.

Um foi beber no cabaré, e outro na venda.

No retorno de suas fazendas, era mais de três horas da madrugada e havia uma encruzilhada onde se encontraram completamente bêbados no volante. Ao tentarem desviar um do outro acabaram colidindo na valeta. Saíram cambaleantes na embriaguês e já se insultando: - Filho de uma puta,... A culpa foi sua! – berrou Agripino.

- Vai tomar no cu, ô meia roda! – respondeu Zé Maria.

Eles sacaram suas pistolas e começaram a atirar, mas de tão bêbados, e no escuro, não conseguiam mirar e nem se manterem em pé com aprumo. Descarregaram toda a munição até ficar apenas o “clic” dos gatilhos. Então largaram as armas e partiram ao corpo á corpo com socos e chutes até se atracarem e rolarem pelo pasto como dois moleques brigões.

O dia raiava e padre João fazia seu passeio á cavalo antes da missa, levando sua máquina fotográfica para captar imagens dos pássaros matutinos quando avistou duas camionetas batidas na beira da estrada. Parou para ver, e lá estavam os dois fazendeiros em coma alcoólico no pasto. Ele sorriu e sussurrou: - Obrigado, Senhor!

Alguns dias depois, Zé Maria e Agripino receberam recado do padre, convidando-os á uma conversa conciliadora na sacristia da matriz. E assinalava: “conto com suas eméritas presenças.”.

Os dois matutaram que seria uma boa ocasião para colocar o padreco no seu devido lugar!

Assim foram ao encontro com as ordens na ponta da língua. Zé Maria começou: - O padre é forasteiro, e ainda não conhece bem como são as coisas aqui.

Agripino prosseguiu: - O vigário falou em respeito; mas faltou ao respeito com a gente! Se não entender isto, acho que não vai ficar muito tempo por aqui.

Padre João encarou os dois e respondeu: - Engano seu, senhor. Eu pretendo ficar aqui por muitos anos, e para demonstrar minha intenção, apresento aos senhores o meu cartão de visitas! – entregou-os dois envelopinhos, que abriram ressabiados até se espantarem com o conteúdo: fotos mostrando-os deitados e abraçados na relva do pasto. – Mas,... Que porra é esta?

- Psiu! Olhe o palavrão na casa de Deus, senhor Agripino! – respondeu João com dedo em riste e risinho nos lábios: - Que vergonha; então toda essa querela é briguinha de namorados?

- Agripino já ia sacando a arma quando João prosseguiu: - Nem pense em fazer isto! Há fotos iguais em posse de meu advogado e jornalistas amigos meus na capital; e se acontecer alguma coisa comigo, esses retratos vão chegar aos jornais, principalmente á aqueles marrons que adoram escândalos!

Bufando de ódio, Zé Maria falou: - A gente tava bêbado, e brigamos, é só isto que aconteceu!

- Na foto parece outra coisa. Que feio héim?

- Ah,... Quanto o vigário quer por esses retratos?  A gente paga! – completou Agripino.

- Eu não quero o dinheiro de vocês! Eu quero que parem de azucrinar as pessoas desta cidade com suas brigas, que já extrapolaram totalmente os limites da decência! Nas suas terras ou naquele puteiro da beira da estrada podem até se matarem; e não se preocupem com a extrema unção que disto me encarrego! Mas na presença das pessoas desta comunidade, eu exijo o mínimo de decoro e respeito. Entenderam?

- Tá bem, padre! – falou Agripino. – E os retratos? Vai devolver pra gente?

- Se fizermos um acordo, os pego de volta e os destruo.

- O vigário dá sua palavra?

- Senhor José Maria; conhece a frase, “eis o milagre da fé”? Então podem botar fé na minha palavra. Agora saiam, reflitam e obrigado pela deferência!

Os dois saíram furiosos, mas cientes. As brigas em público cessaram, restringindo-se as cercas de suas fazendas e á câmara dos vereadores.

Alguns quiseram que padre João se candidatasse á prefeitura. Ele recusou. Detestava política!

Mas qualquer vigário de cidadela sabe que um dia terá que lidar com o sobrenatural!

A fazenda do senhor Gumercindo era conhecida por Fazenda da Sinhana, e situava-se longe do núcleo urbano.  Ele vivia com seus filhos e a esposa Almira, dedicando-se ao cultivo do café e criação de gado. Nada diferente das demais propriedades rurais em torno não fossem os fenômenos que ocorriam á qualquer hora, apavorando a família e empregados: panelas se erguiam do fogão de lenha durante a preparação dos alimentos e levitavam através da janela, sendo atiradas ao quintal. Dona Almira desafiava, dizendo: “pode levar que eu faço mais!”. Objetos da casa e ferramentas desapareciam para depois serem encontradas em outros lugares sem que alguém as tivesse manuseado. Pessoas sentiam puxões de cabelo à noite, enquanto que cobertores eram arrancados e atirados ao chão. Colchões pareciam querer se levantar e se enrolar aos pés da cama. Em diversas ocasiões a casa foi alvejada por pedras que ricocheteavam nas paredes junto á excrementos do curral, e novamente não se descobria os autores, pois vinham de várias direções.

Diante disto, padre João foi chamado para benzer a fazenda e espantar os maus espíritos. A sala de jantar foi preparada para a celebração com a família e empregados em volta da mesa. Padre João iniciou o culto, e repentinamente o cômodo começou a ser alvejado com excrementos de vaca que pareciam vir de todas as janelas e portas. Então o padre esconjurou os espíritos, ordenando que cessassem em nome de Deus, e passou a ser o alvo do bombardeio, tendo que sair correndo da casa até a porteira onde seu cavalo estava amarrado, só parando de ser alvejado quando montou e saiu á galope.

Chegou ao povoado coberto de bosta. Mas não se deu por vencido!

Numa segunda tentativa, João chegou após uma chuva, prendendo seu cavalo á porteira e o guarda chuva aberto á um mourão de cerca. Novamente prepararam a sala de jantar para a celebração, que desta vez ocorreu sem qualquer problema. Parecia estar tudo resolvido e, após um café com broa, o padre seguiu á porteira para ir embora. Porém, quando foi apanhar seu guarda chuva, o encontrou no chão amassado como se fosse uma bola de papel, e seu cavalo tão assustado que quando o soltou da porteira foi preciso segurar firme o cabresto para que não fugisse. Montou-o e o animal saiu em disparada!

Estes fenômenos fizeram a fazenda ganhar fama de mal assombrada. Chamaram pai de santo e até pastor evangélico para tentar espantar os espíritos; e invariavelmente saiam correndo, não raro tigrados pelos jatos de excrementos. Gumercindo então decidiu abandonar aquela casa, construindo outra, bem longe, onde nada de sobrenatural ocorreu.

O casarão ficou sem moradores, servindo apenas de lugar para guardar tralhas e coisas da lida no campo.

Mas Padre João não era de desistir.

Foi pegando aqui e ali mais informações. Descobriu que Sinhana era a sinhá Ana, esposa do barão que construíra a casa. Soube também que Almira não gostava de viver naquele casarão, e sempre insistia que se construísse outra casa, moderna, mas seu esposo, Gumercindo, estava reticente. Não seria ela a simular as assombrações para forçar a mudança? Sim, era possível; ele leu sobre isto, mas e quanto aos excrementos voando para todo o lado? Eram dúvidas na mente inquieta do vigário.

Passaram muitos anos, e um belo dia, João resolveu pôr a história a limpo.

Decidido á passar uma noite no casarão, obteve permissão, e seguiu carregando todo o repertório de rezas, amuletos e esconjuros que conhecia. Deixou sua Kombi diante do alpendre da casa com frente virada para a estrada e chave na ignição, pois se precisasse sair correndo, estaria no jeito. O interior da casa era assustador e escuro. O padre ia iluminando os cômodos vazios com sua lanterna e trazendo o terço na outra mão. Deixaram alguns móveis velhos que davam uma impressão ainda mais sombria, além de cestos contendo espigas de milho, latões de leite, velhas ferramentas e rodas de carroça e carro de boi, quebradas. Nada de anormal na ronda além dos rangidos nas velhas madeiras do assoalho e sons da mata. Então João buscou seu saco de dormir na mochila e o estendeu sobre um jirau de bambu. Colocou a lanterna com foco voltado ao teto para espantar o breu, e se deitou.

Não queria dormir, mas o silêncio quebrado pelo farfalhar da vegetação na brisa o induziu á um sono pesado, pelo menos até ser despertado pelo ruído de passos dentro da casa. João levantou a cabeça e perguntou: - Quem está aí? – não houve resposta, apenas passos que poderiam ser gambás andando pela casa em busca das espigas de milho nas cestas. Então os passos pareceram se aproximar, semelhantes á pés descalços infantis nas largas tábuas do assoalho. Um arrepio lhe correu ao perceber um vulto perto de si: era um menino negro cujos olhos brilhavam á luz da lanterna. Assustado, João perguntou: - O que está fazendo aqui, menino?

- Num sei!... – respondeu: - Tô esperando a Sinhana vim me buscá,... Eu quero ir embora, mas num sei como.

- Você quer ir embora pra onde?

- Pra junto da Sinhana!... Vosmecê me ajuda?

- Como eu posso ajudar você?

- Chama ela pra me levá!

- A onde ela está?

- Lá fora! – apontou á porta.

João disse: - Então pode ir embora, meu filho. – olhou a porta. – Sinhana está te esperando! - quando voltou a olhar o menino, ele não estava mais lá.

O padre se levantou e apontou o foco da lanterna para todos os lados. Olhou seu relógio, que marcava 4h45 da manhã. Ele dormiu a noite toda, e estava sozinho no casarão. O que foi aquilo; alucinação, sonho ou uma alma penada? Ficou um tempo parado, até avistar o azul noturno ir se clareando, vazando pelas gretas das janelas fechadas. Decidiu juntar suas coisas e voltar ao povoado. O mistério da Fazenda da Sinhana pertencia á sua história.

Ao chegar para a missa das seis horas, havia uma mulher parada á porta da Igreja, que perguntou: - Bom dia senhor; por acaso tem missa agora?

- Sim, certamente; e, por acaso, eu sou o padre!

- Ah, o senhor é padre João?

- Sim! Como é o nome da senhorita?

- Sou Helena! O senhor me batizou nesta mesma igreja, há trinta e dois anos! – riso. – O senhor me livrou de um grande mico!

João riu: - Eram outros tempos de informações esparsas sobre as coisas. E seus pais, Pedro e Catarina? Nunca mais os vi.

- Mudaram daqui em busca de uma vida melhor. Depois papai faleceu e mamãe casou de novo! – deu de ombros: - Estou em busca de minhas raízes e quis conhecer minha cidade natal. – riso: - Não imaginei que Ituinaçu fosse tão pequena.

- Sim: meia dúzia de ruas, duas vendas, um prédio municipal que abriga tudo, uma escola, uma praça, esta igreja e acabou-se! Mas é bom viver aqui.

- Parece aconchegante. Eu vou ficar para a missa!

João sorriu e a convidou a entrar.

 

FIM

 

 

 

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