quarta-feira, 4 de agosto de 2021

CONTOS DO VIGÁRIO #06 - PRIMEIRA PARTE.

 

VIGÁRIO LINEU

VIGÁRIO, s. m. aquele que se faz ás vezes de outro.

Era manhã. Debruçado no balcão da sua farmácia, Alfredo lia o jornal trazendo manchetes da Copa do Mundo: - Com Pelé no grupo, vai ser moleza o Brasil ganhar! – espiou sua mulher, que olhava a parte dos fundos da loja vizinha por uma janela.  – O que foi Alzira?

- Já são nove e meia, e o senhor Jacob ainda não abriu sua loja!

Ele deu de ombros: - Vai ver que se atrasou.

- Não; o carro dele está parado na rua em frente á loja!

- Ás vezes ele está lá dentro fazendo alguma coisa antes de abrir a porta.

- Com luzes acesas de dia, o senhor Jacob? – ela abanou a cabeça, esticou o pescoço á janela e o chamou: - Olá, bom dia!... – não houve resposta: - Está tudo bem? – novamente o silêncio e ela se virou á Alfredo: - Tem algo errado; mesmo se ele estivesse no escritório, não deixaria de abrir as portas da loja!

Alfredo seguiu á janela e o chamou: - Seu Jacob, tudo bem aí?... Seu Jacob? –

Alzira falou: - Ele não deixaria de responder!... Pule o muro e dê uma olhada!

- Tá maluca? Ele vai achar que estou xeretando! Não quero encrenca pro meu lado.

- Então deixa que eu vou olhar!

- Não!... Tá bem Alzira, mas ser der problema, a culpa é sua! – á contragosto Alfredo saiu ao pequeno beco que fazia divisa com o acesso aos fundos da loja vizinha, galgou o muro e caminhou á janela aberta, que era guarnecida de grades. Ao olhar o interior colocou as mãos na cabeça: - Misericórdia! – se virou á Alzira: - Chame a polícia, rápido!

O detetive Agamêmnon Mathias e seu assistente Josélio olhavam o corpo de Jacob desabado sobre seu birô com uma enorme poça de sangue contornando sua cabeça e escorrendo ao chão. Era um homem gordo e estava sem o paletó do terno apenas com colete e mangas arregaçadas. Na base da nuca e no alto da cabeça havia ferimentos por onde esvaiu muito sangue. Seu paletó estava no encosto da cadeira giratória onde permanecia sentado. Havia papéis espalhados no birô: promissórias, alguns cheques anotações e recibos de venda de veículos preenchidos em favor de Jacob Stein. Havia também um cofre, estantes com pastas e talões de notas fiscais além de livros-caixa e um calendário com vários dias circundados ora em caneta azul, ora em vermelho com minúsculas anotações.

- Será que foi latrocínio doutor Mathias?

- Vejamos Josélio. – forçou a fechadura do cofre com um lenço na mão: - Está trancando. Mas há gavetas abertas que poderiam conter dinheiro. – aproximou-se de Josélio: - Todos sabem que esta loja de bolsas e artigos em peles e couros é apenas fachada para o verdadeiro negócio do senhor Jacob Stein: agiotagem!

- É verdade doutor; eu tenho amigos que pediram grana emprestada a ele.

- Com certeza não vão faltar suspeitos!

- O que o doutor acha que aconteceu aqui?

Mathias olhou em volta e disse: - É improvável que o assassino entrasse pela loja ainda no expediente e ao sair fechasse as portas; até por que estão trancadas por dentro.

- Então o assassino entrou pela porta do beco lateral, que dá direto na rua!

- Sim, Quando o senhor Jacob estava sentado ao seu birô, ficava de costas para a porta de entrada pelo beco. Os policiais que atenderam á ocorrência disseram que estava destrancada. Mas será que o senhor Jacob a deixaria assim, estando aqui sozinho? – apontou á porta. – Tem até tranca com cadeado por dentro e a janela tem grades.

- Então o próprio senhor Jacob abriu a porta para o assassino entrar?

- É possível Josélio! – observou o corpo. – Na posição que o corpo se encontra, eu suponho que o assassino atirou na sua cabeça por trás e de surpresa. Então o senhor Jacob se dobrou para frente, sobre o birô. E veja isto! – apontou ao corpo: - observe este volume sob o colete!

- É um coldre com uma pistola!

- Exato Josélio! Se estivesse de frente, o senhor Jacob poderia ter reagido sacando a arma para intimidar o assassino ou mesmo atirar! E veja aqui. – apontou á mão esquerda: - Está com duas alianças de ouro no dedo; era viúvo. O ladrão não as levou e olhe no outro braço: um relógio dourado, certamente de ouro. – abanou a cabeça: - Se foi latrocínio, o ladrão escolheu o que levaria.

- Alguma coisa específica, é o que o doutor quer dizer?

- Sim. Ou o próprio Senhor Jacob poderia ter remexido nas gavetas a procura de alguma coisa antes de ser morto, e o crime pode ter sido por vingança! O assassino atirou na cabeça do senhor Jacob mais de uma vez mesmo quando já estava tombado sobre a mesa; veja os respingos de sangue para todo lado! – Mathias pôs a mão no queixo e questionou: - Quantas pessoas não teriam vontade de ver o senhor Jacob no caixão de defunto? Uma legião de devedores! E quantos não teriam coragem de eliminá-lo para assim fazer desaparecer a dívida? O-ho, isto não vai ser fácil, temos que aguardar a perícia da balística para determinar o calibre da arma. Onde está o casal que encontrou o corpo?

- Estão aguardando na farmácia ao lado. – respondeu um policial que os acompanhava.

- Vamos começar então! - concluiu Mathias.

A farmácia do casal Alzira e Alfredo era vizinha antiga á loja de Jacob, e relataram sua rotina: ele abria sua loja sempre ás oito horas da manhã em ponto. Quando o casal chegava para abrir a farmácia ás nove horas, já o encontravam atrás do balcão da peleria. Mathias perguntou se havia empregados, e responderam que não. Apenas uma faxineira que vinha duas vezes por semana chamada Ana e também um homem que vigiava a loja quando Jacob estava atendendo alguém no escritório.

- Como assim? Explique melhor senhor Alfredo!

- Bem doutor; não deve ser segredo que o senhor Jacob emprestava dinheiro a juros. E quando as pessoas o procuravam atrás de empréstimo, iam com ele ao escritório, enquanto o tal homem ficava de vigia.

- O senhor e sua esposa sabem o nome dele? – perguntou Josélio.

- Não! – respondeu Alzira. – Na verdade, esse homem me dá medo!

- Por quê?

-Ah doutor Mathias; ele olha a gente de lado quando o patrão está lá dentro.

Alfredo a cortou: - O que minha mulher quer dizer, é que o tal sujeito é o capanga do senhor Jacob. Anda armado e é o cobrador das dívidas!

- Como o senhor sabe disto?

- É o que dizem doutor! Se procurarem bem, vão encontrar pessoas que falarão das ameaças que esse sujeito faz nas cobranças!

Mathias o encarou e perguntou: - Senhor Alfredo; alguma vez pediu dinheiro emprestado ao senhor Jacob?

- Não vou mentir doutor; sim. Há alguns anos, em 1963, quando precisamos reformar este prédio, eu fiz um empréstimo com ele no valor de novecentos cruzeiros, e dei como garantia um Cadillac que tinha pertencido ao meu pai. – riso. – Foi nosso presente de casamento!

- Um belo automóvel! – observou Mathias.

- Sim doutor. Mas tivemos diversos imprevistos; esta casa é muito antiga, foi preciso gastar mais do esperávamos e a reforma se demorou. Acabamos por atrasar as parcelas do empréstimo e os juros foram se acumulando até não conseguirmos mais pagar. Então eu procurei o senhor Jacob para negociar, mas ele foi irredutível. Disse-me que eu tinha aceitado as regras do empréstimo quando o procurei, e que agora não era justo questioná-las. Tentei argumentar, mas foi inútil; ele disse que se fizesse acordo de moratória com todo mundo que não sabe controlar seu dinheiro, e o procura na hora do aperto, ele iria á falência! Mas para me ajudar, aceitaria o carro para quitar a dívida. Eu relutei, mas acabei cedendo.

- E o valor do carro cobria a dívida? – perguntou Josélio.

- Cobria além da dívida! Era um automóvel conversível de luxo que depois o safado vendeu por mais de três mil cruzeiros! Eu soube depois.

- O senhor guardou rancor do senhor Jacob por isto?

Alzira se assustou e Alfredo respondeu: - Está querendo perguntar se eu o matei? Olhe doutor Mathias, eu respondo com toda honestidade: não o matei! Não ia sujar minhas mãos e estragar nossas vidas por causa daquele bosta.

- Ok, senhor Alfredo. Sobre o tal homem, o capanga: como ele é?

- Branco alto e magro.

- Se for preciso fazer um retrato falado, o senhor saberia descrevê-lo?

- Acho que não. Eu e Alzira não damos confiança pra ele; queremos distância!

Mathias assentiu: - Ok. Podem falar mais um pouco das rotinas do senhor Jacob? - o casal informou que Jacob fechava a loja para almoço ás onze trinta e voltava às treze horas, para cerrar as portas ás dezessete horas. - Ele ficava no escritório até que horas? – perguntou Mathias. – eles responderam que não sabiam ao certo, porque fechavam a farmácia ás dezoito e trinta, mas notavam que mesmo depois de fechadas as portas da loja, ele costumava permanecer no escritório. Seu carro estava sempre por ali até ir embora. Josélio perguntou: - O tal homem também ficava com ele?

Alfredo respondeu: - Não sabemos. Como disse: achamos melhor não intrometer das coisas dos vizinhos! – Alzira meneou a cabeça em afirmação.

- Entendo. - fitando Alfredo nos olhos, disparou: - Uma última pergunta: o senhor possui arma de fogo?

- Não! – respondeu firme lhe devolvendo o olhar.

- Certo. Foi uma pergunta de rotina; vamos deixá-los trabalhar em paz. Vocês serão convocados para depor como testemunhas. Se lembrarem de mais algum detalhe, anotem. Obrigado! – e saíram da farmácia.

Na rua, Josélio perguntou: - O que o doutor achou?

- Estranho que não queiram intrometer na vida do vizinho, mas o homem pula o muro para olhar pela sua janela? Os becos de acesso aos fundos fazem divisa nas duas lojas, assim não seria difícil a Alfredo chegar ao escritório se valendo de uma porta aberta ao descuido. Ele foi militar. Viu a foto na parede mostrando-o com farda do exército?

- Sim doutor, eu vi. Deve saber atirar, né?

- Com certeza. Também temos que encontrar esse vigia que andava armado. Se ele estava com o patrão no escritório á noite, porque não o protegeu?

- E se não estava?

- A pergunta é outra Josélio: e se estava? Mas por hora, vamos á vizinha do outro lado: uma senhora, não é?

- Sim doutor. Ela chama Hebe Marazzi, e se parece com aquelas damas de antigas fotos!

- Hum, vamos conferir!

A casa da senhora Hebe fazia parede á parede com a loja de Jacob. Era um sobrado antigo de arquitetura requintada, porém, um pouco maltratada pelo tempo. Por dentro, parecia realmente um cenário de outra época, com tapeçarias, cortinas, moveis estofados em veludo cheios de entalhes em rococó, muitas pinturas e retratos nas paredes. A senhora Hebe acompanhava o cenário nos trajes de “ficar em casa”: uma espécie de robe de seda e chinelos com pompons. Cabelos grisalhos num coque completavam o figurino. Ela recebeu Mathias e Josélio com deferência, e quando perguntaram se tinha visto o algo estranho na noite anterior, ou ouvido algum estampido semelhante ao disparo de arma de fogo, ela foi direta: - Ah, doutor Mathias. Eu estava assistindo minha novela e nessas horas não presto atenção em mais nada, e também escuto pouco. A televisão precisa ficar num volume mais alto!

- Sim; eu entendo. – respondeu Mathias. – A senhora é vizinha do senhor Jacob há muito tempo?

- Oh sim. Mais até do que gosto de me lembrar. Nasci nesta casa, e sempre vivi aqui.

- Então a senhora o conhece desde que se estabeleceu ao lado? – perguntou Josélio.

- Conheço-o desde que veio de Londres, em maio de 1939. – abanou a cabeça: - Mal falava português. Minha mãe lhe ministrou aulas particulares, nesta mesma sala.

- Que interessante! – falou Mathias. – A senhora pode falar mais sobre ele?

- Eu não vou usar de eufemismos: Esse sujeito não valia nada!

Com certo espanto, Mathias perguntou: - Por que a senhora afirma isto?

- Ora doutor: um agiota pode valer alguma coisa? – inclinou-se para frente: - Ele alugou um apartamento que possuíamos assim que chegou da Europa dizendo que fugiu da guerra e era viúvo. A esposa tinha morrido num bombardeio em Londres. Isto era mentira!

- Não era verdade? – perguntou Josélio.

- Pura farsa! Oh, as informações sobre a guerra na Europa eram confusas, então levamos fé no que ele disse. Só mais tarde tivemos ciência que os bombardeios nazistas sobre Londres iniciaram no outono de 1940 na “blitz londrina”. Conhecem a história, não é? Ele já estaria no Brasil, mas quando confrontamos a informação, Jacob disse que sua esposa tinha ficado na Europa e só viria quando ele estivesse estabelecido de modo a lhe proporcionar o conforto que gozavam em Londres, e lamentava tê-la deixado lá, se culpando e chorando ao se lembrar da esposa falecida! Isto comoveu mamãe que continuou a lhe apoiar! Ah, como fomos tolos.

- Porque, senhora Hebe?

- Rhum! Ele não veio da Europa com uma mão na frente e outra atrás como dizia. Tinha dinheiro para emprestar e conhecia bem o negócio! Pouco depois de estabelecido, ele adquiriu a loja ao lado e montou a peleria, que todos sabem: é disfarce para sua casa de empréstimos. Ah, nos tempos da segunda guerra tinha muita gente precisando de dinheiro, e ele soube prosperar com o desespero alheio! Vagabundo.

Mathias perguntou: - A senhora, ou sua família precisaram fazer empréstimo com ele alguma vez?

- Sim, a arapuca estava armada para pássaros tolos como nós, doutor Mathias! Terminada a guerra, mamãe quis ir á Europa. Tínhamos parentes passando por dificuldades na Itália e isto lhe trazia imensa angústia. Mas os nossos negócios de tecelagem não iam bem, e mesmo estando a Europa aos cacos, não seria uma viagem barata. Então recorremos ao nosso amigo Jacob, que de imediato nos emprestou o dinheiro necessário á viagem, e também ao auxílio de nossos parentes! Muito bonzinho, não é mesmo? – fez uma pausa para tomar fôlego. – Permanecemos um bom tempo por lá, e quando voltamos ao Brasil deparamos com uma situação difícil na tecelagem que possuíamos sociedade, ao mesmo instante que mamãe ficou enferma. Ficamos impossibilitados de honrar a dívida com Jacob que nos propôs uma renegociação! – abanou a cabeça rangendo os dentes: - Não era nada mais que um novo empréstimo com condições e juros ainda mais altos! Meu Deus; afundamo-nos naquele lamaçal de promissórias e juros até não aguentarmos mais. Então, nosso amigo se mostrou de verdade: um capitalista na máxima expressão do termo! Ele executou a dívida e nos tomou a parte que tínhamos na tecelagem e o apartamento que morava! – suspirou: - O canalha ainda dizia que só não nos tomou esta casa por gratidão á acolhida que lhe demos!... Filho de uma puta. Espero que na religião dele exista inferno. Pois é pra lá que ele deve ter ido direto!

- Se me permite perguntar; isto cobriu a dívida?

- Com muita folga doutor Mathias. Uns sessenta por cento da dívida eram juros sobre juros! Bem que meu sobrinho Michael tentou nos alertar para não pegarmos dinheiro com ele, mas não lhe demos atenção. Fomos os perfeitos otários! Agora eu vivo da pensão do meu marido, e alugo quartos. – abriu os braços. - Não se iludam por esses candelabros cintilantes, porque é apenas metal barato polido imitando prata!

Mathias e Josélio trocaram olhares e o detetive perguntou: - Então a senhora não mantinha nenhum tipo de contato com o senhor Jacob?

- Sou uma dama ás antigas doutor: não me custava lhe dar bom dia ou boa tarde quando passava diante da sua loja. Apenas por educação, que fique claro!

- Sim, sim! Nessas ocasiões, a senhora avistou um rapaz na loja, que parece ser vigia?

- Sim; um branquelo com cara de vagabundo? – riu: - Ele não é apenas vigia. É algo mais!

- Como assim?

- Ah doutor; há mais coisas nesta história que vocês não sabem! Esse branquelo se chama Charles, e era namoradinho do Jacob! – Mathias e Josélio se espantaram e ela concluiu: - Ele gostava de homens, e isto não é intriga de uma velhota ressentida. É a mais absoluta verdade!

 

CONTINUA...

 

 

 

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