Clodsmith era loiro de olhos azuis, possuía
bochechas rosadas e barba grisalha além de ostentar uma barriga considerável,
ideal para ser Papai Noel nas festas de fim de ano em lojas e shoppings. Era
bom porque entrava dinheiro extra, mas também era ruim porque algumas crianças puxavam
sua barba com força para ver se não era postiça e ele ainda tinha que sorrir.
Por isto preferia festas particulares com predominância de adultos.
Era noite de Natal e ele chagava do trabalho
com coxas doloridas de tanto servir de banco ás crianças, quando seu telefone
tocou: alguém precisava urgentemente de um Papai Noel naquela noite para uma
festa particular. Ele argumentou que tinha acabado de chegar á sua casa e
estava cansado, mas insistiram com uma proposta: – Pagamos dois mil reais de
cachê! – ele respondeu de imediato: - Já descansei! Pode me passar o endereço?
Em uma hora Clodsmith chegou a uma casa
num bairro afastado: uma mansão antiga em estilo normando com telhados descrevendo
ângulos agudos por onde despontava uma grande chaminé de lareira, e foi
recebido por uma governanta alta de cabelos pretos presos num coque apertado e
uniforme de veludo negro que o conduziu á cozinha, pediu que aguardasse a
patroa e saiu. Enquanto esperava, ele observou que havia apenas uma panela
sobre o fogão e cheiro de batata cozida - Uai? Vai ter festa de Natal e só
fizeram batatas?... Humm, vai ver que encomendaram o resto da ceia. – deu de
ombros.
Então chegou a dona da casa: uma mulher
loira de cabelos ondulados que caíam no seu colo desnudo pelo decote do vestido
vermelho escuro e olhos num tom verde marinho, que falou. – Olá, eu sou
Lucélia; conversamos ao telefone!
- Sim,... Prazer senhora Lucélia!
-
A senhora está no céu! Com licença,... – e lhe deu leve beliscão na bochecha. –
Que fofo, é perfeito! Venha comigo que vou lhe explicar o que queremos. –
seguiram por um corredor que dava numa ampla sala de jantar com uma grande mesa
posta com porcelanas, cristais, talheres de prata e candelabros portando velas
douradas. Adiante passaram por outra sala com móveis estofados em couro marrom
onde algumas pessoas conversavam certamente convidados para a festa, que lhe
cravaram os olhos. Havia uma enorme lareira em cuja boca caberia um homem em
pé, uma árvore de natal com enfeites vermelhos e uma porta em arco gótico por aonde
vieram dois serviçais, que lhe pareceram anões perguntando á Lucélia se já poderiam
preparar as batatas coradas. Ela respondeu ríspida: - Saiam daqui; esperem eu
mandar seus energúmenos! – virou-se á Clodsmith. – Essa criadagem, parece que
não entendem as ordens! - chegaram á um cômodo pequeno onde havia uma escada em
caracol que parecia se perder no teto e um armário. Ela o abriu dizendo: - Use
esta roupa de Papai Noel! – ele retrucou: - Não é necessário, eu trouxe a
minha. – ela o cortou: - Oh não! Esta aqui é feita num tecido especial para
climas tropicais; sinta-o! – ele o apalpou e era macio e brilhante como seda. –
Realmente, senhora. Que tecido é este? – ela respondeu. – Tecido inteligente de
fibras sintéticas climatizadoras; pode se trocar atrás do biombo. - Clodsmith
vestiu a roupa e seu toque era muito suave e tinha leve perfume de menta. – Vou
pedir para mim depois! – pensou enquanto Lucélia o examinava: - Ficou perfeito!
Venha. – Eles subiram á um mirante no cume do telhado mais alto, que possuía
uma passarela de acesso á chaminé. Lucélia explicou: - Queremos que nossos
convidados tenham a noite mais memorável de suas vidas, assim decidimos fazer
tudo á maneira tradicional. Ao sinal o senhor descerá pela chaminé até a
lareira com o saco de presentes. – apontou á sacola vermelha que já estava lá,
e disse: - É leve, tem apenas papel picado; o presente de verdade será entregue
lá embaixo! - Clodsmith olhou aquilo espantado e disse: - Dona Lucélia,... Eu
não sabia que seria assim; é muito alto e tenho vertigens... – ela o cortou: -
Dobramos o cachê! – ele sorriu: - Se é assim,... Sem problemas! – ela explicou
que a lareira foi limpa para a ocasião e havia uma escada metálica fixa as
paredes internas da chaminé, que era bem larga. Ele debruçou na borda, e era
verdade. Lucélia recomendou que aguardasse o toque de uma sineta e depois
poderia descer. Ele perguntou: - Desculpe a intromissão, mas é uma festa de
família, há crianças? – ela sorriu ao responder. – Não há crianças. Somos
apenas um grupo de amigos apreciadores da boa mesa. – piscou o olho: - Festas
com crianças são aborrecidas! – e entregou-lhe envelope com dinheiro do cachê,
agradeceu e se retirou. – Obrigado... Lucélia! – falou enfiando-o no bolso.
Então Clodsmith sentou na beirada da
chaminé, e enquanto aguardava, rememorava experiências com festas natalinas em
que teve que chegar de helicóptero, pulando de paraquedas e certa vez num trenó
com rodinhas para deslizar na grama. Em festas familiares nunca havia grandes
surpresas no roteiro: era entrar na sala pela porta da frente com o velho “ho,
ho, ho” de refrão. Mas aquela seria uma confraternização de amigos e isto o lembrava
das confraternizações em empresas, quando é chamado para fazer Papai Noel á
marmanjos bêbados e sem noção. – Hum, se for uma destas!... E ainda descendo
pela chaminé, acho que estou fazendo até barato! – abanou a cabeça.
Passaram-se longos vinte minutos de
espera, sentado á beira da chaminé olhando a noite quando a sineta tocou. Era
hora da decida triunfal do Papai Noel pela lareira.
Ele apanhou o saco e começou a descer a
escada interna da chaminé. Estava escuro apenas com a luz da sala abaixo; dava
ouvir burburinho das vozes dos convidados e da anfitriã, e apesar da impressão
inicial de ser um traje mais fresco, ao contrário, era quente e exalava forte odor
de menta. – Caramba, já estou suando,... E que cheirinho enjoado! – reclamou
enquanto descia. Então seus pés bateram numa grade no meio da chaminé. – Que
merda é esta?... Era o que faltava; esta lareira tem grade e não a abriram! – então
chamou: – Dona Lucélia! - ela respondeu:
- Pois não? – ele falou: - Desculpe, mas tem uma grade fechada tampando a
decida! – ouve-se o riso dos convidados e ela disse: - Esta criadagem; parece
que não sabem ouvir ordens, eu mandei abrir! – mais risos, ao que ele
respondeu: - Então vou subir de novo e esperar que abram, não é? – ela retrucou:
- Não suba, fique aí que isto será resolvido!
- Está bem, dona Lucélia; vou esperar! –
e se encostou á parede, pingando de suor. – “Especial para climas tropicais”!
Só se for na Groenlândia! – resmungou, aproximando o rosto na parede da
chaminé, que tinha um cheiro estranho, que não era de fuligem. Apurou o olfato
e pareceu-lhe borralho de braseiro de churrascaria. – Assam churrasco nesta
lareira?... - então começaram a subir vapores quentíssimos que o ensoparam de suor;
ele olhou abaixo e havia fogo! Ele reclamou: - Hei! O que está acontecendo aí
embaixo?... Acenderam a lareira? – ouve-se novo coro de risos e isto o irritou:
- Não estou achando graça!... Pra mim chega, acabou a brincadeira do Papai
Noel! – se preparou para subir quando recebeu uma chuva de especiarias e
pimenta do reino atiradas pela boca da chaminé que o fizeram espirrar. – Ah,
filho da puta!... Quando eu chegar aí vou te encher de porrada! – faltavam
alguns degraus para galgar o topo quando atiraram uma saraivada de sal grosso
que o obrigou a parar para esfregar os olhos, seguido de barulho metálico
tornando tudo escuro. Ele limpou a vista e terminou a subida deparando-se com
uma tampa cheia de orifícios que fechava a saída. – Hei! Hei! O que é isto?...
Abram! – tentava esmurrá-la, mas estava presa; então escutou uma voz com
sotaque francês: - U-la-lá!... Dentrro de trrês horras, estarrá no ponto! –
Clodsmith escutou e se lembrou do motivo da festa: “confraternização de amantes
da boa mesa”. Isto o alertou e o apavorou: - Espere aí,... Esse negócio aqui
não é festa de Natal coisa nenhuma, é uma reunião de canibais! É isto? – Lucélia
respondeu: - Mas que absurdo, não somos canibais, somos gourmets, e a festa é
uma homenagem ao grande Oswald de Andrade e seu “Manifesto Antropofágico”.
- O quê?... Que isto tem a ver?
- Arre, mas que coisa lamentável é a
ignorância! – zombou Lucélia. – Isto refere á assimilação das influências
estrangeiras pela nossa cultura; Oswald preconizou que deveríamos agir como
antropófagos, consumindo os arquétipos de fora para depois os digerir. Nós vamos
radicalizar o conceito esta noite, e começaremos pelo estereótipo do Papai
Noel, que você encarna com perfeição!
- Cambada de malucos; antropofágico uma
ova, vocês são é loucos!... Loucos e assassinos canibais!
- Não diga isto Papai Noel; e sinta-se
honrado em ter seu corpo servido num ritual de alto nível cultural! Sabia que
temos até um ex-presidente da república entre os convidados?
- Deve ser mais um filho da puta
psicopata metido a intelectual!... Mas ouça,... Eu não sirvo para isto; sou
diabético!
- Que bom; vai acrescentar notas
agridoces ao sabor! – respondeu Lucélia aos risos: - Vamos voltar á sala
Pierre!
Ele escutou passos se afastando e ainda
gritou. – Covardes!... Tomara que morram de caganeira! – estava molhado de
suor, cheirando á menta, alecrim e pimenta do reino. Ele forçou a tampa para
removê-la; foi inútil, estava lacrada. Tentou usar o celular para chamar a
polícia, mas não tinha sinal, então gritou por socorro em desespero enquanto o
calor se tornava mais e mais intenso e sufocante, até que já sem ar e sem
forças, Clodsmith despencou na escada e caiu na grelha ardente. Suas ultimas
palavras foram: - Por que não ouvi minha namorada indiana,... Que mandava eu
parar de comer churrascos,... Porque ia acabar,... Do mesmo,... Jeito dos
bois... – e tudo escureceu.
Meses depois o telefone tocava na casa
de Valeriana: - “Festas Felizes”, bom dia!
- Bom dia querida! Vi seu anúncio na
internet e fiquei interessada na festinha do coelho da páscoa. É você que faz o
coelhinho?
- Sim senhora! Eu sou o coelhinho da
páscoa “Bombom”, o mais fofo da cidade, posso garantir! – falava alisando suas
formas curvilíneas. – Como é sua graça, senhora?
- A senhora está no céu! Sou Lucélia e
vou dar uma festa de páscoa á um grupo de amigos, apreciadores da boa mesa,... E
amamos chocolate!
Fim.
Nota: O Manifesto Antropófago ou Antropofágico foi um manifesto
literário escrito por Oswald de Andrade, publicado na primeira edição da
Revista da Antropofagia em maio de 1928, que tinha por objetivo repensar a
dependência cultural brasileira. A linguagem do manifesto é majoritariamente
metafórica, contendo fragmentos poéticos bem-humorados e torna-se a fonte teórica
principal do movimento.
Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_Antropófago
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=marcos_texto&cd_verbete=339
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_Antropófago
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=marcos_texto&cd_verbete=339
Excelente!!!!
ResponderExcluirObrigado! terá continuação, aguarde!
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