segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

"...Chegou a uma mansão antiga em estilo normando com telhados descrevendo angulos por onde despontava uma grande chaminé"


Clodsmith era loiro de olhos azuis, possuía bochechas rosadas e barba grisalha além de ostentar uma barriga considerável, ideal para ser Papai Noel nas festas de fim de ano em lojas e shoppings. Era bom porque entrava dinheiro extra, mas também era ruim porque algumas crianças puxavam sua barba com força para ver se não era postiça e ele ainda tinha que sorrir. Por isto preferia festas particulares com predominância de adultos.
Era noite de Natal e ele chagava do trabalho com coxas doloridas de tanto servir de banco ás crianças, quando seu telefone tocou: alguém precisava urgentemente de um Papai Noel naquela noite para uma festa particular. Ele argumentou que tinha acabado de chegar á sua casa e estava cansado, mas insistiram com uma proposta: – Pagamos dois mil reais de cachê! – ele respondeu de imediato: - Já descansei! Pode me passar o endereço?
Em uma hora Clodsmith chegou a uma casa num bairro afastado: uma mansão antiga em estilo normando com telhados descrevendo ângulos agudos por onde despontava uma grande chaminé de lareira, e foi recebido por uma governanta alta de cabelos pretos presos num coque apertado e uniforme de veludo negro que o conduziu á cozinha, pediu que aguardasse a patroa e saiu. Enquanto esperava, ele observou que havia apenas uma panela sobre o fogão e cheiro de batata cozida - Uai? Vai ter festa de Natal e só fizeram batatas?... Humm, vai ver que encomendaram o resto da ceia. – deu de ombros.
Então chegou a dona da casa: uma mulher loira de cabelos ondulados que caíam no seu colo desnudo pelo decote do vestido vermelho escuro e olhos num tom verde marinho, que falou. – Olá, eu sou Lucélia; conversamos ao telefone!
- Sim,... Prazer senhora Lucélia!
 - A senhora está no céu! Com licença,... – e lhe deu leve beliscão na bochecha. – Que fofo, é perfeito! Venha comigo que vou lhe explicar o que queremos. – seguiram por um corredor que dava numa ampla sala de jantar com uma grande mesa posta com porcelanas, cristais, talheres de prata e candelabros portando velas douradas. Adiante passaram por outra sala com móveis estofados em couro marrom onde algumas pessoas conversavam certamente convidados para a festa, que lhe cravaram os olhos. Havia uma enorme lareira em cuja boca caberia um homem em pé, uma árvore de natal com enfeites vermelhos e uma porta em arco gótico por aonde vieram dois serviçais, que lhe pareceram anões perguntando á Lucélia se já poderiam preparar as batatas coradas. Ela respondeu ríspida: - Saiam daqui; esperem eu mandar seus energúmenos! – virou-se á Clodsmith. – Essa criadagem, parece que não entendem as ordens! - chegaram á um cômodo pequeno onde havia uma escada em caracol que parecia se perder no teto e um armário. Ela o abriu dizendo: - Use esta roupa de Papai Noel! – ele retrucou: - Não é necessário, eu trouxe a minha. – ela o cortou: - Oh não! Esta aqui é feita num tecido especial para climas tropicais; sinta-o! – ele o apalpou e era macio e brilhante como seda. – Realmente, senhora. Que tecido é este? – ela respondeu. – Tecido inteligente de fibras sintéticas climatizadoras; pode se trocar atrás do biombo. - Clodsmith vestiu a roupa e seu toque era muito suave e tinha leve perfume de menta. – Vou pedir para mim depois! – pensou enquanto Lucélia o examinava: - Ficou perfeito! Venha. – Eles subiram á um mirante no cume do telhado mais alto, que possuía uma passarela de acesso á chaminé. Lucélia explicou: - Queremos que nossos convidados tenham a noite mais memorável de suas vidas, assim decidimos fazer tudo á maneira tradicional. Ao sinal o senhor descerá pela chaminé até a lareira com o saco de presentes. – apontou á sacola vermelha que já estava lá, e disse: - É leve, tem apenas papel picado; o presente de verdade será entregue lá embaixo! - Clodsmith olhou aquilo espantado e disse: - Dona Lucélia,... Eu não sabia que seria assim; é muito alto e tenho vertigens... – ela o cortou: - Dobramos o cachê! – ele sorriu: - Se é assim,... Sem problemas! – ela explicou que a lareira foi limpa para a ocasião e havia uma escada metálica fixa as paredes internas da chaminé, que era bem larga. Ele debruçou na borda, e era verdade. Lucélia recomendou que aguardasse o toque de uma sineta e depois poderia descer. Ele perguntou: - Desculpe a intromissão, mas é uma festa de família, há crianças? – ela sorriu ao responder. – Não há crianças. Somos apenas um grupo de amigos apreciadores da boa mesa. – piscou o olho: - Festas com crianças são aborrecidas! – e entregou-lhe envelope com dinheiro do cachê, agradeceu e se retirou. – Obrigado... Lucélia! – falou enfiando-o no bolso.
Então Clodsmith sentou na beirada da chaminé, e enquanto aguardava, rememorava experiências com festas natalinas em que teve que chegar de helicóptero, pulando de paraquedas e certa vez num trenó com rodinhas para deslizar na grama. Em festas familiares nunca havia grandes surpresas no roteiro: era entrar na sala pela porta da frente com o velho “ho, ho, ho” de refrão. Mas aquela seria uma confraternização de amigos e isto o lembrava das confraternizações em empresas, quando é chamado para fazer Papai Noel á marmanjos bêbados e sem noção. – Hum, se for uma destas!... E ainda descendo pela chaminé, acho que estou fazendo até barato! – abanou a cabeça.
Passaram-se longos vinte minutos de espera, sentado á beira da chaminé olhando a noite quando a sineta tocou. Era hora da decida triunfal do Papai Noel pela lareira.
Ele apanhou o saco e começou a descer a escada interna da chaminé. Estava escuro apenas com a luz da sala abaixo; dava ouvir burburinho das vozes dos convidados e da anfitriã, e apesar da impressão inicial de ser um traje mais fresco, ao contrário, era quente e exalava forte odor de menta. – Caramba, já estou suando,... E que cheirinho enjoado! – reclamou enquanto descia. Então seus pés bateram numa grade no meio da chaminé. – Que merda é esta?... Era o que faltava; esta lareira tem grade e não a abriram! – então chamou: – Dona Lucélia!  - ela respondeu: - Pois não? – ele falou: - Desculpe, mas tem uma grade fechada tampando a decida! – ouve-se o riso dos convidados e ela disse: - Esta criadagem; parece que não sabem ouvir ordens, eu mandei abrir! – mais risos, ao que ele respondeu: - Então vou subir de novo e esperar que abram, não é? – ela retrucou: - Não suba, fique aí que isto será resolvido!
- Está bem, dona Lucélia; vou esperar! – e se encostou á parede, pingando de suor. – “Especial para climas tropicais”! Só se for na Groenlândia! – resmungou, aproximando o rosto na parede da chaminé, que tinha um cheiro estranho, que não era de fuligem. Apurou o olfato e pareceu-lhe borralho de braseiro de churrascaria. – Assam churrasco nesta lareira?... - então começaram a subir vapores quentíssimos que o ensoparam de suor; ele olhou abaixo e havia fogo! Ele reclamou: - Hei! O que está acontecendo aí embaixo?... Acenderam a lareira? – ouve-se novo coro de risos e isto o irritou: - Não estou achando graça!... Pra mim chega, acabou a brincadeira do Papai Noel! – se preparou para subir quando recebeu uma chuva de especiarias e pimenta do reino atiradas pela boca da chaminé que o fizeram espirrar. – Ah, filho da puta!... Quando eu chegar aí vou te encher de porrada! – faltavam alguns degraus para galgar o topo quando atiraram uma saraivada de sal grosso que o obrigou a parar para esfregar os olhos, seguido de barulho metálico tornando tudo escuro. Ele limpou a vista e terminou a subida deparando-se com uma tampa cheia de orifícios que fechava a saída. – Hei! Hei! O que é isto?... Abram! – tentava esmurrá-la, mas estava presa; então escutou uma voz com sotaque francês: - U-la-lá!... Dentrro de trrês horras, estarrá no ponto! – Clodsmith escutou e se lembrou do motivo da festa: “confraternização de amantes da boa mesa”. Isto o alertou e o apavorou: - Espere aí,... Esse negócio aqui não é festa de Natal coisa nenhuma, é uma reunião de canibais! É isto? – Lucélia respondeu: - Mas que absurdo, não somos canibais, somos gourmets, e a festa é uma homenagem ao grande Oswald de Andrade e seu “Manifesto Antropofágico”.
- O quê?... Que isto tem a ver?
- Arre, mas que coisa lamentável é a ignorância! – zombou Lucélia. – Isto refere á assimilação das influências estrangeiras pela nossa cultura; Oswald preconizou que deveríamos agir como antropófagos, consumindo os arquétipos de fora para depois os digerir. Nós vamos radicalizar o conceito esta noite, e começaremos pelo estereótipo do Papai Noel, que você encarna com perfeição!
- Cambada de malucos; antropofágico uma ova, vocês são é loucos!... Loucos e assassinos canibais!
- Não diga isto Papai Noel; e sinta-se honrado em ter seu corpo servido num ritual de alto nível cultural! Sabia que temos até um ex-presidente da república entre os convidados?
- Deve ser mais um filho da puta psicopata metido a intelectual!... Mas ouça,... Eu não sirvo para isto; sou diabético!
- Que bom; vai acrescentar notas agridoces ao sabor! – respondeu Lucélia aos risos: - Vamos voltar á sala Pierre!
Ele escutou passos se afastando e ainda gritou. – Covardes!... Tomara que morram de caganeira! – estava molhado de suor, cheirando á menta, alecrim e pimenta do reino. Ele forçou a tampa para removê-la; foi inútil, estava lacrada. Tentou usar o celular para chamar a polícia, mas não tinha sinal, então gritou por socorro em desespero enquanto o calor se tornava mais e mais intenso e sufocante, até que já sem ar e sem forças, Clodsmith despencou na escada e caiu na grelha ardente. Suas ultimas palavras foram: - Por que não ouvi minha namorada indiana,... Que mandava eu parar de comer churrascos,... Porque ia acabar,... Do mesmo,... Jeito dos bois... – e tudo escureceu.

Meses depois o telefone tocava na casa de Valeriana: - “Festas Felizes”, bom dia!
- Bom dia querida! Vi seu anúncio na internet e fiquei interessada na festinha do coelho da páscoa. É você que faz o coelhinho?
- Sim senhora! Eu sou o coelhinho da páscoa “Bombom”, o mais fofo da cidade, posso garantir! – falava alisando suas formas curvilíneas. – Como é sua graça, senhora?
- A senhora está no céu! Sou Lucélia e vou dar uma festa de páscoa á um grupo de amigos, apreciadores da boa mesa,... E amamos chocolate!

Fim.



Nota: O Manifesto Antropófago ou Antropofágico foi um manifesto literário escrito por Oswald de Andrade, publicado na primeira edição da Revista da Antropofagia em maio de 1928, que tinha por objetivo repensar a dependência cultural brasileira. A linguagem do manifesto é majoritariamente metafórica, contendo fragmentos poéticos bem-humorados e torna-se a fonte teórica principal do movimento.
Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_Antropófago
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=marcos_texto&cd_verbete=339

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