“O trabalho e seu lugar pertencem ao mundo
submetido a uma vigilância exata e constante, enquanto a família é, ao
contrário, um refúgio que escapa a esse controle. (assim) a família tornou-se,
portanto o domínio do privado, o único lugar que se pode legalmente escapar ao
olhar inquiridor da sociedade industrial”.
Charles
Donzelot.
No decorrer dos séculos XVIII e XIX eram
editadas coleções de livros populares, que na França recebiam o nome Bibliothéque Bleue, que consistia em
pequenos livros encadernados em brochuras com capas em azul, vermelho ou
marmorizado e preços modestos. A temática era variada: poesia, vida dos santos,
biografias de figuras célebres da história, romances de cavalaria ambientados
na idade média e versões de obras literárias eruditas nem sempre muito fiéis
aos originais, dentre outros. Assim, através das personagens femininas dessas
obras populares crio-se o estereótipo da mulher romanticamente idealizada:
camponesa ou princesa conforme cada enredo e não raro submetidas á crueldade de
algum algoz, uma madrasta, por exemplo, aonde e redenção viria pelo resgate de um
“príncipe encantado”. Aliás, a salvação da mulher aprisionada sempre prescindia
do homem.
Tudo isto pode ter ajudado na construção
do papel feminino circunscrito ao ambiente familiar (o domínio privado citado
por Donzelot) com a tarefa de cuidar da criação dos filhos e da casa, enclausurando-a
nos espaços do lar a serviço da manutenção das rotinas familiares, uma vez que
a manutenção da ordem familiar ainda pertenceria ao marido (o domínio do
trabalho). Portanto, se pensarmos no imaginário construído nesta estrutura de
contornos patriarcais, o casamento se constituiria na única maneira aceita pela
sociedade das mulheres saírem da casa dos pais de modo lícito, se evadindo da
tutela do pai (homem), mas passando á tutela do marido (outro homem); contudo,
o diferencial estaria no fato de ser a sua própria casa, ou a realização de
todo o corolário do êxito da “rainha do lar”. E mesmo que a união não se
tornasse um casamento feliz, ainda era melhor do que ficar solteirona na casa
dos pais aprisionada no humilhante papel de “titia” (lembrando que falamos de
épocas em que a emancipação feminina pela instrução e o trabalho, e mesmo o
sufrágio, ainda eram questões tabus pela sociedade).
Posto isto, concluímos que o noivado era
o esperado momento da redenção; o encontro do “príncipe encantado” e da
construção do seu próprio lar. As mulheres se preparavam para este dia
produzindo seus enxovais com peças de cama mesa e banho, cuidadosamente trabalhados
com rendas e bordados.
Mas e quando este sonho era frustrado?
A literatura e o imaginário popular
estão repletos de histórias de noivas que não realizaram o sonho do casamento
seja pela morte de um dos noivos quase sempre em circunstâncias trágicas, como
guerras, enfermidades e acidentes, ou pela fuga do noivo, abandonando a pobre
donzela no altar. Histórias de noivos abandonados são mais raras (ver o caso “O
Palacete Azul da Tijuca” neste blog). Imagine-se a humilhação e o vexame
publico da mulher nesta situação? Assim, além de inspirar a literatura,
histórias de tragédias e rompimentos quase no dia do casamento, também alimentam
lendas de assombrações sob a forma de “noivas fantasmas”, como a do lago
assombrado pelo fantasma de uma noiva, que no dia do seu casamento resolveu
cruzar o lago de canoa para cortar caminho, mas a embarcação virou e a moça
morreu afogada. Dizem que quem tenta pescar neste lago é tocado por uma mão
fria, molhada e invisível. Existem lendas de noivas fantasmas avistadas ás
estradas de madrugada assustando principalmente caminhoneiros (ver o caso
“Estradas Assombradas” neste blog). Há inclusive relatos de uma noiva fantasma
que passeia no parque do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora, sempre á meia
noite e teria sido avistada por vigias. E sem esquecer a lenda da Pascualita, a
noiva mexicana que teria sido picada por uma aranha viúva negra no dia do seu
casamento e morreu. Então seu pai a teria embalsamado, transformando-a num
manequim que fica á vitrine da sua loja de vestidos de noiva “La Popular” na
cidade de Chihuahua, no México.
Existe uma lenda urbana em Juiz de Fora
conhecida popularmente como “A Noiva do Privilége” em alusão á uma famosa casa
noturna. Consta que um casal estava descendo a Estrada Engenheiro Gentil Forn
de automóvel rumo á sua viagem de lua de mel quando o veículo perdeu a direção
numa curva em declive, saindo da estrada e fazendo a porta do carona se abrir atirando
a noiva no abismo próximo a um antigo casarão, matando-a. Dizem que o espírito
desta noiva permanece ali rondando os arredores. Há uma versão em que a noiva
desejava adquirir aquele casarão para instalar um restaurante ou casa noturna.
Assim ela permanecia no local vendo seu sonho realizado.
Contudo, existiriam versões envolvendo o
próprio casarão e seu em torno.
Sem estender demais nos aspectos
históricos, a vivenda foi construída na virada dos séculos XIX e XX e faria
parte do conjunto de habitações erigidas ao longo do caminho que levava aos
bairros Borboleta e São Pedro. Naquela casa teria vivido uma mulher (vamos
chamá-la de Ana) que teria falecido bem idosa e solteira. Décadas antes, a jovem Ana estaria noiva (ao
exemplo do noivo, ela era de família tradicional de Juiz de Fora). Já estavam nos
preparativos do casamento quando o noivado teria sido rompido sem rumores de
escândalos, como traições ou alguma tragédia, levando a crer que foi uma
decisão consensual entre as famílias, até porque não haveria interesse em criar
ambientes de intrigas e fofocas na sociedade. Contudo, Ana não se casou
posteriormente, tendo vivido no casarão dos pais até sua morte. Há um relato
não confirmado que teria sido sepultada com vestido branco e véu, semelhante a
um vestido de noiva, assinalando que permaneceu virgem; isto era um costume
antigo (1). Será que Ana carregou o trauma do noivado rompido até sua morte a
ponto de transformá-la num fantasma aprisionado nesta quimera?
Contudo haveria um componente nesta
lenda que pouca gente sabe. Nas imediações do casarão, mais abaixo nas
proximidades do atual bairro Vale do Ipê, existiu na década de 1960 um centro espírita
de umbanda denominado “Pinga Fogo” em referência á entidade que o médium chefe
do terreiro incorporava: um exu, que na tradição das religiões afro-brasileiras
é a entidade que faz a ligação dos humanos (mundo terreno) com os orixás
(magia), e é tido erroneamente como maligno. Este local poderia ter agregado
forças capazes de criar fantasmas?
Lendas podem conter fragmentos de
relatos reais acrescentados de elementos de mistério, mas se retirarmos seus
aspectos sobrenaturais, seria plausível um homem realizar o desejo de sua
noiva, morta logo após o casamento, em adquirir um imóvel para nele instalar
uma casa noturna. É também possível que o casarão tivesse servido de moradia á
uma mulher idosa e solteira, que não se casou por circunstâncias alheias á sua
vontade.
Segundo a pesquisadora Eleanor Sidgwick
(Reino Unido, 1845 – 1936) fenômenos paranormais como aparições podem ocorrer
devido ás expectativas das pessoas em torno de um fato, real ou não. Assim,
como se criaram histórias em torno do casarão e noivas impedidas de realizar ou
consumar o casamento (por imposição ou acidente), a materialização deste
“fantasma” ocorreria em função da expectativa em se ver uma noiva fantasma. E
ainda, como esta materialização ocorre na presença de um médium, e se sabendo
que existiu um local de culto espírita nas imediações, isto reforçaria relatos
de pessoas que afirmam ter visto o fantasma (talvez médiuns).
Outro fator se basearia na teoria do
pesquisador de fenômenos paranormais Roger Laffororest (Paris, 1905 – 1998) que
classificou logradouros onde ocorrem tragédias, como acidentes, em “locais
maléficos” ou “vórtices de energias” ou ainda caixas de ressonância das energias
desprendidas pelo sofrimento, ódio, ira que também se manifestaria à presença
de um agente, ou médium. O trágico acidente certamente traria muito sofrimento
ao noivo, e talvez ao espírito de sua noiva; assim como a frustração do
casamento de Ana, não realizado.
Lendas urbanas é o território do mistério
e da imaginação, e compreendê-las buscando suas raízes é penetrar nos
interstícios daquilo que compõe a história anônima das cidades e seus
personagens. É ali que elas começam!
(1) Sobre o costume
citado tenho um caso pessoal. Tive uma tia-avó que quando jovem se apaixonou e
queria se casar, mas a família foi contra. Eram tempos que a vontade e o desejo
eram totalmente subjulgados por uma ordem patriarcal que preconizava obediência
aos ditames familiares; assim, ela não se casou e permaneceu solteira. Foi
sepultada com vestido branco e véu, e todos sabiam que ela morreu virgem.
FIM.
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Excelente texto!!!
ResponderExcluirConhece a lenda das noivas da Rússia?
Abraços
Sim. Ha filmes com o tema. Apavorante!
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