domingo, 8 de março de 2020

NOIVAS FANTASMAS (CASOS REAIS).



 “O trabalho e seu lugar pertencem ao mundo submetido a uma vigilância exata e constante, enquanto a família é, ao contrário, um refúgio que escapa a esse controle. (assim) a família tornou-se, portanto o domínio do privado, o único lugar que se pode legalmente escapar ao olhar inquiridor da sociedade industrial”.
                                                                           Charles Donzelot.


No decorrer dos séculos XVIII e XIX eram editadas coleções de livros populares, que na França recebiam o nome Bibliothéque Bleue, que consistia em pequenos livros encadernados em brochuras com capas em azul, vermelho ou marmorizado e preços modestos. A temática era variada: poesia, vida dos santos, biografias de figuras célebres da história, romances de cavalaria ambientados na idade média e versões de obras literárias eruditas nem sempre muito fiéis aos originais, dentre outros. Assim, através das personagens femininas dessas obras populares crio-se o estereótipo da mulher romanticamente idealizada: camponesa ou princesa conforme cada enredo e não raro submetidas á crueldade de algum algoz, uma madrasta, por exemplo, aonde e redenção viria pelo resgate de um “príncipe encantado”. Aliás, a salvação da mulher aprisionada sempre prescindia do homem.
Tudo isto pode ter ajudado na construção do papel feminino circunscrito ao ambiente familiar (o domínio privado citado por Donzelot) com a tarefa de cuidar da criação dos filhos e da casa, enclausurando-a nos espaços do lar a serviço da manutenção das rotinas familiares, uma vez que a manutenção da ordem familiar ainda pertenceria ao marido (o domínio do trabalho). Portanto, se pensarmos no imaginário construído nesta estrutura de contornos patriarcais, o casamento se constituiria na única maneira aceita pela sociedade das mulheres saírem da casa dos pais de modo lícito, se evadindo da tutela do pai (homem), mas passando á tutela do marido (outro homem); contudo, o diferencial estaria no fato de ser a sua própria casa, ou a realização de todo o corolário do êxito da “rainha do lar”. E mesmo que a união não se tornasse um casamento feliz, ainda era melhor do que ficar solteirona na casa dos pais aprisionada no humilhante papel de “titia” (lembrando que falamos de épocas em que a emancipação feminina pela instrução e o trabalho, e mesmo o sufrágio, ainda eram questões tabus pela sociedade).

Posto isto, concluímos que o noivado era o esperado momento da redenção; o encontro do “príncipe encantado” e da construção do seu próprio lar. As mulheres se preparavam para este dia produzindo seus enxovais com peças de cama mesa e banho, cuidadosamente trabalhados com rendas e bordados.
Mas e quando este sonho era frustrado?

A literatura e o imaginário popular estão repletos de histórias de noivas que não realizaram o sonho do casamento seja pela morte de um dos noivos quase sempre em circunstâncias trágicas, como guerras, enfermidades e acidentes, ou pela fuga do noivo, abandonando a pobre donzela no altar. Histórias de noivos abandonados são mais raras (ver o caso “O Palacete Azul da Tijuca” neste blog). Imagine-se a humilhação e o vexame publico da mulher nesta situação? Assim, além de inspirar a literatura, histórias de tragédias e rompimentos quase no dia do casamento, também alimentam lendas de assombrações sob a forma de “noivas fantasmas”, como a do lago assombrado pelo fantasma de uma noiva, que no dia do seu casamento resolveu cruzar o lago de canoa para cortar caminho, mas a embarcação virou e a moça morreu afogada. Dizem que quem tenta pescar neste lago é tocado por uma mão fria, molhada e invisível. Existem lendas de noivas fantasmas avistadas ás estradas de madrugada assustando principalmente caminhoneiros (ver o caso “Estradas Assombradas” neste blog). Há inclusive relatos de uma noiva fantasma que passeia no parque do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora, sempre á meia noite e teria sido avistada por vigias. E sem esquecer a lenda da Pascualita, a noiva mexicana que teria sido picada por uma aranha viúva negra no dia do seu casamento e morreu. Então seu pai a teria embalsamado, transformando-a num manequim que fica á vitrine da sua loja de vestidos de noiva “La Popular” na cidade de Chihuahua, no México.

Existe uma lenda urbana em Juiz de Fora conhecida popularmente como “A Noiva do Privilége” em alusão á uma famosa casa noturna. Consta que um casal estava descendo a Estrada Engenheiro Gentil Forn de automóvel rumo á sua viagem de lua de mel quando o veículo perdeu a direção numa curva em declive, saindo da estrada e fazendo a porta do carona se abrir atirando a noiva no abismo próximo a um antigo casarão, matando-a. Dizem que o espírito desta noiva permanece ali rondando os arredores. Há uma versão em que a noiva desejava adquirir aquele casarão para instalar um restaurante ou casa noturna. Assim ela permanecia no local vendo seu sonho realizado.
Contudo, existiriam versões envolvendo o próprio casarão e seu em torno.
Sem estender demais nos aspectos históricos, a vivenda foi construída na virada dos séculos XIX e XX e faria parte do conjunto de habitações erigidas ao longo do caminho que levava aos bairros Borboleta e São Pedro. Naquela casa teria vivido uma mulher (vamos chamá-la de Ana) que teria falecido bem idosa e solteira.  Décadas antes, a jovem Ana estaria noiva (ao exemplo do noivo, ela era de família tradicional de Juiz de Fora). Já estavam nos preparativos do casamento quando o noivado teria sido rompido sem rumores de escândalos, como traições ou alguma tragédia, levando a crer que foi uma decisão consensual entre as famílias, até porque não haveria interesse em criar ambientes de intrigas e fofocas na sociedade. Contudo, Ana não se casou posteriormente, tendo vivido no casarão dos pais até sua morte. Há um relato não confirmado que teria sido sepultada com vestido branco e véu, semelhante a um vestido de noiva, assinalando que permaneceu virgem; isto era um costume antigo (1). Será que Ana carregou o trauma do noivado rompido até sua morte a ponto de transformá-la num fantasma aprisionado nesta quimera?
Contudo haveria um componente nesta lenda que pouca gente sabe. Nas imediações do casarão, mais abaixo nas proximidades do atual bairro Vale do Ipê, existiu na década de 1960 um centro espírita de umbanda denominado “Pinga Fogo” em referência á entidade que o médium chefe do terreiro incorporava: um exu, que na tradição das religiões afro-brasileiras é a entidade que faz a ligação dos humanos (mundo terreno) com os orixás (magia), e é tido erroneamente como maligno. Este local poderia ter agregado forças capazes de criar fantasmas?
Lendas podem conter fragmentos de relatos reais acrescentados de elementos de mistério, mas se retirarmos seus aspectos sobrenaturais, seria plausível um homem realizar o desejo de sua noiva, morta logo após o casamento, em adquirir um imóvel para nele instalar uma casa noturna. É também possível que o casarão tivesse servido de moradia á uma mulher idosa e solteira, que não se casou por circunstâncias alheias á sua vontade.
Segundo a pesquisadora Eleanor Sidgwick (Reino Unido, 1845 – 1936) fenômenos paranormais como aparições podem ocorrer devido ás expectativas das pessoas em torno de um fato, real ou não. Assim, como se criaram histórias em torno do casarão e noivas impedidas de realizar ou consumar o casamento (por imposição ou acidente), a materialização deste “fantasma” ocorreria em função da expectativa em se ver uma noiva fantasma. E ainda, como esta materialização ocorre na presença de um médium, e se sabendo que existiu um local de culto espírita nas imediações, isto reforçaria relatos de pessoas que afirmam ter visto o fantasma (talvez médiuns).
Outro fator se basearia na teoria do pesquisador de fenômenos paranormais Roger Laffororest (Paris, 1905 – 1998) que classificou logradouros onde ocorrem tragédias, como acidentes, em “locais maléficos” ou “vórtices de energias” ou ainda caixas de ressonância das energias desprendidas pelo sofrimento, ódio, ira que também se manifestaria à presença de um agente, ou médium. O trágico acidente certamente traria muito sofrimento ao noivo, e talvez ao espírito de sua noiva; assim como a frustração do casamento de Ana, não realizado.

Lendas urbanas é o território do mistério e da imaginação, e compreendê-las buscando suas raízes é penetrar nos interstícios daquilo que compõe a história anônima das cidades e seus personagens. É ali que elas começam!

(1) Sobre o costume citado tenho um caso pessoal. Tive uma tia-avó que quando jovem se apaixonou e queria se casar, mas a família foi contra. Eram tempos que a vontade e o desejo eram totalmente subjulgados por uma ordem patriarcal que preconizava obediência aos ditames familiares; assim, ela não se casou e permaneceu solteira. Foi sepultada com vestido branco e véu, e todos sabiam que ela morreu virgem.

FIM.

Referências bibliográficas:
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ENCICLOPÉDIA das Ciências Ocultas, Lisboa, RPA – Publicações Lda., volume 2, capítulo LXI, p. 251 – 359; 1979.
LAFFOROREST, Roger, Casas que Matam, citado por: MACHADO, Adilson, PIRES, Iracema, Paredes com Memória, Maldições antigas e Radiações Telúricas, Revista Planeta, São Paulo, Grupo de Comunicação Três Ltda., numero 77, p. 28 – 33,  fevereiro de 1979.
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