terça-feira, 23 de junho de 2020

A MÃE DO OURO.


Uma sombra te acompanha.
Não é a tua e nem a minha.
Uma sombra te segue.
Não se achega e nem se afasta.
Uma sombra te alcança.
E te engole no caminho!


Amarildo era um sitiante na serra de Ibitipoca, longe da cidade, como ele mesmo dizia: na roça, da roça! Toda semana ia levar queijos, doces e aguardente produzidos no seu sítio para vender nas hospedarias e bares do lugar na sua velha Kombi, e antes de voltar parava para beber uma cerveja e conversar com amigos.
Naquele dia a “Tieta” – como chamava seu veículo em homenagem á uma novela da TV - acordou teimosa em pegar. Mas como já estava tudo na carroceria, Amarildo decidiu arriscar, e saiu com Tieta pela estrada afora.
Ele conseguiu chegar á cidade, e depois de fazer as entregas seguiu á rotina da cervejinha antes de voltar ao sítio.
No bar estava um velho morador do alto da serra de nome Sebastião Ambrósio, que vez por outra ia á cidade comprar mantimentos e beber cerveja porque na sua roça só tinha pinga!
Amarildo olhava-o: diziam que tinha mais de oitenta anos, e quando lhe perguntavam sua idade, ele ria ao responder: - Sabe aquele moço que tá conduzindo o carro de boi no quadro “Independência ou Morte”? Era eu!... – e gargalhava.
Todos gostavam das suas histórias de fantasmas, que sabia aos montes. O dono do bar perguntou: - Hei Tião, fala aí da mãe do ouro?
Ele o encarou ao responder: - Tião é o caralho! Sou Sebastião Ambrósio. – todos riram e ele continuou: - Mãe do ouro é uma assombração que aparece em lugar que tem gente enterrada sem saber que morreu. – risada. – E aqui tem muito disso! Caboclo que morreu de morte matada; escravo que morreu no eito sem padre e nem rezadeira pra encomendar o corpo e anjinho que morreu antes de saber que era gente. Eles não sabem que morreram e ficam vagando errantes. A mãe do ouro é a emissária do anjo da morte que vem buscar esses espíritos e vai procurando eles com um lampião pela estrada e no meio do mato, mas os espíritos não são besta e se escondem! Acontece que ela não pode voltar de mãos vazias, senão o anjo da morte acha ruim; então, pra não ser castigada, ela pega o primeiro vivo que aparece! – olhou em volta: - O infeliz nunca mais aparece! Então quem precisa andar pela estrada á noite, tem que ficar esperto quando vê a luz do lampião dela. Quando a gente chega perto, ele afasta. E quando a gente afasta, ele chega perto! – ele olhou seu relógio e disse: - A mãe do ouro sai pra procurar os espíritos sempre na hora do cão, três da madrugada, e á essa hora eu quero é já estar encolhidinho na cama; vou embora, inté! – e saiu.
- Que figura! – falou o dono do bar. Amarildo achava-o misterioso.
Naquela noite ele permaneceu no bar para assistir o jogo de futebol na TV; seu time, Botafogo, iria jogar, e empatou!
A conversa estava animada e acabou perdendo a noção da hora: quando viu era 2h12min! Então se despediu e saiu para a jornada de volta ao sítio. Tieta fez um pouco de charme para pegar, mas funcionou, e enquanto seguia veio á lembrança de uma de uma mulher muito velha, chamada Dona Santinha, que costumava visitar os enfermos para rezar o terço. Estava sempre de luto, com vestido comprido até os pés e lenço negro na cabeça. Depois da visita, era certo que o enfermo passava rapidinho desta para a melhor. Criança, Amarildo tinha medo dela. Seria a “mãe do ouro”?
Quando já estava a meio caminho, o motor da velha Kombi começou a ratear até parar. Ele insistiu e o arranque fez aquele “num vou, num vou num vou” de que não ia pegar. A bateria acabou arriando, fazendo-o abanar a cabeça pensando que tinha passado muito a hora de levar Tieta á uma boa revisão. Assim só lhe restava duas opções: esperar na cabine até passar alguém para ajudá-lo a empurrar, ou seguir á pé até seu sítio, que daria meia hora de caminhada. Como Marilene, sua mulher, devia estar preocupada com a demora e não havia sinal de celular ali, Amarildo decidiu pela segunda opção. Colocou o triângulo de alerta preso na carroceria, e seguiu adiante. Na manhã seguinte, chamaria o reboque para levar Tieta á “UTI” da oficina.
Aquele trecho da estradinha de terra era o pior: um aclive cheio de curvas e grotas sombrias perto de uma pedreira. A mata entrelaçada de cipós se mostrava bruxuleante á luz da lanterna de Amarildo na noite sem lua, e o vento farfalhava as árvores em sussurros lamentosos.  Ele já havia passado ali á noite diversas vezes, mas a história de Sebastião Ambrosio sobre a mãe do ouro, parecia lhe ter despertado o medo inconsciente daquilo que não se conhece. Lembrou-se de Dona Santinha: branca como cera e mais enrugada que um maracujá, com seu lenço preto na cabeça despontando seu cabelo grisalho e crespo como palha seca. Ela costumava andar á noite com uma lanterna que emitia luz amarelada como uma lamparina. – Deixa de besteira, sô! – abanou a cabeça e seguiu a passos mais rápidos.
Mais adiante depois de uma curva, surgiram dois pontinhos luminosos na estrada vindos à sua direção. Um arrepio lhe correu o corpo inteiro e ele parou, mas era apenas um cachorro preto cujas retinas refletiram á luz da lanterna e ele apanhou um galho para espantá-lo: - Passa! – o animal fugiu para o mato e Amarildo se recompôs, colocando-se em marcha novamente. Mas veio uma dúvida: - Uai,... De quem é esse cachorro? - olhou seu relógio que marcava exatamente três horas da madrugada, a hora do cão! Então apertou o passo ouvindo barulhos ao vento na mata: piados de pássaros noturnos; um galho seco que caía; o gotejamento choroso de uma nascente nas pedras. Sons da mata que na sua mente eram presságios do sobrenatural.
Então um ruído vindo de trás o fez virar a cabeça; era uma luz amarelada seguindo-o. Isto arrepiou todos os pelos que tinha no corpo: - Ah meu pai eterno!... É ela! – pensou e tratou de pôr sebo nas canelas e correr como nunca. Olhava para trás e a luz se perdia nas curvas e entre as árvores, mas em seguida se aproximada enquanto o som do vento nas arvores e a sinfonia de silvos e batidas aumentava. Era só ele parar para a luz amarelada e trêmula se aproximar junto á um murmúrio lúgubre, botando-o á correr e fazendo o sinal da cruz!
Quando chegou ao seu sítio, pulou a porteira de numa só vez e correu á entrada da casa. Até a chave custou a achar o buraco da fechadura enquanto ele olhava a curva na estrada, e lá vinha mãe do ouro com sua lanterna brilhando no escuro. A porta abriu, ele entrou, trancou-a novamente e encostou-se ofegante á porta quando Marilene chegou:
- Ocê demorou, eu já tava preocupada! Que foi homem, tu tá branco,... – viu sua calça molhada do meio das pernas: -... E tá mijado?
Ele se afastou falando: - Eu fui beber água e a biquinha me espirrou!... Me deixa, Marilene; me deixa!

À entrada da porteira, Bartolomeu, um rapaz surdo mudo olhava a casa. Estava com sua bicicleta de farol ligado, e deu de ombros pensando: - Eu ia ajudar o “seu” Amarildo com o carro,... Ele não quis; “pobrema” dele! – e seguiu seu rumo.

Fim

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