quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O Palacete Azul da Tijuca. CASO REAL!


“A literatura ganhou muitas páginas inspiradas em lendas e tradições sobre casas mal assombradas, onde se ouviam conversas de personagens há muito desaparecidos, gemidos de encarcerados que não se encontravam jamais, ruídos de talheres, de correntes arrastadas, enfim mil e uma sugestões sobrenaturais que faziam arrepiar os cabelos aos mais corajosos.”.
 Em 31 de agosto de 1946, a “Revista da Semana” trazia matéria intitulada: “Solares e Supertições” reportando a demolição do Palacete Azul da Tijuca, á Rua Haddock Lobo, em torno do qual corriam “histórias fantásticas de causas sobrenaturais” como frisava a reportagem. Existiria a lenda de um noivado desfeito que teria levando ao abandono da residência onde o casal viveria. A história destes jovens noivos delineava um drama com final trágico, pois dias antes do casamento, a noiva teria fugido com outro homem. Magoado e profundamente deprimido, o noivo seguiu á casa, onde esperava encontrar a felicidade com sua amada, e cometeu suicido. Assim, sepultado sem os ofícios religiosos por ser um suicida, o espírito do jovem teria se tornado uma alma penada á espera da sua redenção. Ouviam-se lamentos, ruídos de pés se arrastando, palmas e batidas por toda a casa fazendo com que ninguém conseguisse viver no palacete por muito tempo, criando uma lenda com tal força que as pessoas até evitavam passar na sua calçada á noite com medo do fantasma do noivo suicida. Como o lugar ficou com fama de mal assombrado, sua proprietária, Rita Isabel da Costa, não conseguia locatário disposto a ocupá-lo e acabou vendendo o palacete á uma firma (diziam, por uma pechincha) para se livrar do imóvel amaldiçoado e nunca mais quis tocar no assunto. O solar foi demolido e construíram o galpão de uma metalúrgica no local.
A reportagem procurou saber a veracidade daquela história, mas as informações eram contraditórias e imprecisas. Alguns diziam que as famílias dos noivos tinham muita influência e conseguiram abafar o caso.  
A informação mais segura, é que o palacete teria sido construído por uma pessoa muito popular no Rio de janeiro na virada dos séculos XIX e XX, conhecido por Machado Sujo, (apelido?) que teria enriquecido “á custa do seu trabalho numa profissão modesta”. Contudo, a matéria não explica qual seria a atividade que lhe proporcionou recursos para a construção do suntuoso solar.
Seu estilo era Eclético com detalhes neoclássicos, cuja colunata que adornava sua entrada principal teria sido originalmente encomendada pela Prefeitura do Rio de Janeiro para as obras do Theatro Municipal, por ocasião da abertura da Avenida Central em 1903 (Construção á cargo da Comissão Construtora do Theatro Municipal). Eram feitas em mármore de Carrara e possuíam capitéis em estilo compósito de bronze, mas a razão de não serem utilizadas no teatro também era contraditória: uma versão, é que a firma italiana que as produziu demorou a concluí-las, e como haveria um prazo para o término da obra, a Prefeitura encomendou-as á outra firma. A segunda versão, é que foram produzidas menores do que deveriam, e não puderam ser usadas. O fato é que acabaram arrematadas por Machado Sujo, e emprestavam ao “Palacete Azul” um aspecto bastante imponente. 
 Mas nada disso impediu sua demolição em 1946, e, como era costume, alguns operários pernoitaram no prédio, sem dar crédito às histórias de fantasmas. Porém, á meia noite começaram os barulhos de pés se arrastando, palmas, lamentos e batidas sem que se descobrisse o que as provocava. Assustados, os operários saíram correndo do solar e na manhã seguinte queixaram-se ao empreiteiro, recusando-se a dormir dentro da casa assombrada.  O chefe zombou da covardia de seus empregados e, para provar que era tudo imaginação, decidiu pernoitar na casa. Assim o fez, e á meia noite, começaram os barulhos misteriosos. Ele não podia dar sinais que estava com medo, assim se muniu de coragem, reuniu alguns homens e começaram a andar pela casa á procura do “fantasma”, vasculhando cada cômodo, sem nada encontrar. Por fim, subiram uma escada chegando a um quarto de onde parecia vir os barulhos, e ao abrir sua porta quase saíram correndo ante a revoada de um bando de corujas que estaria usando-o como moradia. A matéria diz: “Os homens se entreolharam por alguns segundos e depois deixaram-se empolgar pelo riso orgulhoso da coragem.”
Apesar do tom cético, a reportagem não deixava claro se os ruídos terminaram após a descoberta do ninho de corujas que, no entanto, forneceu uma explicação plausível capaz de dar fim a história do fantasma.
 Se bem que havia um, porém: se era apenas isto, porque a proprietária não deu jeito de espantar as aves para alugar a casa, preferindo vendê-la?  
“A picareta destrói uma lenda” sentenciava a reportagem, concluindo que, dificilmente, os fantasmas do Palacete Azul estariam inclinados a conviverem com dínamos, tornos e cilindros de oxigênio, porque assombrações gostam de silêncio e solidão. Será?
Embora publicado numa revista semanal de variedades, onde sobressairia certo ceticismo em ralação ao sobrenatural, poderíamos fazer algumas considerações: a mais obvia, é que realmente a lenda poderia se apoiar em fenômenos naturais. É sabido que o madeiramento estrutural das casas antigas tende a expandir ao calor do dia, e retrair à diminuição da temperatura á noite. Lembrando que estamos falando de um imóvel no Rio de Janeiro e suas altas temperaturas. Esse movimento de expansão e retração produz estalos e toques, que, uma mente sugestionada ao sobrenatural poderia interpretar como algo do além, assim como ruídos produzidos por animais noturnos.
No ramo da parapsicologia, os fenômenos do Palacete azul se enquadrariam no que foi nomeado pela Igreja Católica como: “spiritus percutiens” ou “espíritos batedores”.  A jornalista e parapsicóloga Elsie Dubugras (São Paulo, 1904 – 2006) afirmava que, a partir dos estudos de vários pesquisadores do tema, seria possível classificar os casos de fantasmas em quatro categorias: efeitos auditivos; efeitos visuais; efeitos sensoriais e fenômenos objetivos e subjetivos. O pesquisador Roger Laffororest (Paris, 1905 – 1998) em sua obra “Casas que Matam”, afirmava que locais onde ocorreram tragédias, assassinatos e acidentes com vitimas fatais se tornariam “locais maléficos”. No caso do Palacete Azul, o suicídio poderia ter trazido uma espécie de maldição, que seria na verdade um “vórtice de energias” atuando no espaço trazendo a “corporificação” capaz de evocar efeitos auditivos. Ou seja, as casas “assombradas” atuariam como caixas de ressonâncias das energias desprendidas pelo sofrimento, ódio, ira que se impregnaria nas suas paredes, e se manifestaria à presença de um agente, ou médium, capaz de materializar imagens, sons, cheiros etc. Anteriormente, a pesquisadora Eleanor Sidgwick (Reino Unido, 1845 – 1936) já havia atribuído tais fenômenos ás expectativas deste agente, o que eliminaria a possibilidade da presença de espíritos de pessoas falecidas como vetores destes fenômenos. Contudo, Sidgwick reconhecia que seria prematuro fazer afirmações conclusivas, mas apenas elaborar hipóteses provisórias a respeito destes fenômenos sobrenaturais porque existiriam muitos casos que escapariam ás explicações meramente científicas.  
Seria preciso uma pesquisa mais profunda para verificar se os fenômenos auditivos continuaram nas oficinas da metalúrgica ou desapareceram com o final da “caixa de ressonância” do Palacete Azul, indicando, conforme a reportagem, que o fantasma poderia ter saído á procura de um local mais tranquilo para assombrar.

Referências bibliográficas:
DUBUGRAS, Elsie, As Casas Assombradas, Fronteiras do desconhecido, Revista Planeta, São Paulo, Grupo de Comunicação Três Ltda., numero 147/-A, p. 16 – 21,  dezembro de 1984.
DUBUGRAS, Elsie, Os Fantasmas de Borley House, Fronteiras do desconhecido, Revista Planeta, São Paulo, Grupo de Comunicação Três Ltda., numero 145/-A, p. 05 – 09,  dezembro de 1984.
DUBUGRAS, Elsie, Toques e sons Paranormais, Fronteiras do desconhecido, Revista Planeta, São Paulo, Grupo de Comunicação Três Ltda., numero 145/-A, p. 11 – 15,  dezembro de 1984.
FERREZ, Gilberto, O Álbum da Avenida Central de Marc Ferrez. Um Documento Fotográfico da Construção da Avenida Rio Branco. Rio de Janeiro, 1903 – 1906,  São Paulo, João Fortes Engenharia/Editora Exlibris Ltda., p. 186 – 189, 1982. 
LAFFOREST, Roger, Casas que Matam, citado por: MACHADO, Adilson, PIRES, Iracema, Paredes com Memória, Maldições antigas e Radiações Telúricas, Revista Planeta, São Paulo, Grupo de Comunicação Três Ltda., numero 77, p. 28 – 33,  fevereiro de 1979.
SIDGWICK, Eleanor, citada por DUBUGRAS, Elsie, Os Fantasmas de Borley House, p. 07 – 08.
SOLARES e supertições. Revista da Semana, Rio de Janeiro, Cia Editora Americana, ano 47, número 35, p. 48 – 51,  31 de agosto de 1946.

Detalhes das colunas e arquitetura do Palacete Azul semi demolidos em 1946.



sábado, 26 de outubro de 2019

INDIAN CHIEF.


O empresário da construção civil Giorgio Del Nero estava contente. Após muita negociação. conseguira comprar um conjunto de instalações industriais abandonadas a décadas num bairro nobre de Belo Horizonte. Não eram prédios antigos de interesse histórico, apenas velhos galpões e escritórios construidos sem estética que comprou de "porteira fechada", ou seja, incluindo tudo que estava dentro da propriedade: teares industriais obsoletos e enferrujados além de cacarecos cheios de cupins. Iriam direto para o forno da siderúrgica e o lixo.
Homens da sua construtora iam coletando os entulhos menores nos caminhões enquanto empilhadeiras removiam os teares da antiga tecelagem abandonada. Giorgio coordenava os trabalhos de remoção para poderem iniciar a demolição quando um operário o chamou para ver algo num cômodo dentro de um dos galpões.
Era uma espécie de caixa de alvenaria lacrada com tijolos que ao ser aberta trouxe uma velha motocicleta a luz. Giorgio se abaixou, viu a lente trincada da lanterna dianteira e examinou a moto mais um pouco limpando uma grossa camada de pó do tanque revelando o emblema da sua marca: "Indian". Ele tinha certo conhecimento de motocicletas antigas e falou: - Posso estar enganado, mas é uma Indian Chief americana!
Por ser uma raridade valiosa, ele ligou ao corretor que intermediou a negociação do imóvel, que lhe disse: - O antigo proprietário assinou termo de venda com tudo que estivesse lá, e não falou nada de moto. Assim, é sua!
Naquele mesmo dia, ele fez contato com Jairo, um mecânico de motos amigo seu, que foi prontamente buscá-la. Ele falou ao examina-la: - É uma motocicleta Chief  Big Twin 80 1953, raríssima! - olhou-a mais um pouco: - Veja isto Giorgio: o odômetro mostra que ela  não rodou quase nada! Coisa fácil de arrumar.
Assim, puseram a moto na traseira da camionete de Jairo, que saiu levando-a à sua oficina.
Giorgio ficou feliz pelo achado. Gostava de motos, e já a imaginava restaurada quando um dos operários lhe trouxe uma fotografia encontrada no cubículo onde estava a moto . Era a foto de um adolescente ao lado da Indian com uma data escrita à caneta: 1955. Quem seria o garoto?
Dias depois ele foi à oficina conferir os reparos. Jairo o recebeu e foi explicando que foi preciso desmontá-la inteiramente, mas a restauração não seria difícil porque estava tudo praticamente intacto. Lubrificação, troca de algumas peças, verificação de freios e parte elétrica, troca de pneus, que estavam ressecados e a velha Big Twin voltaria a rodar. Giorgio observou que ele passava a mão no pescoço, aparentemente sentindo dor. Ele disse que era apenas problema de coluna.
Ao seu turno, Giorgio procurou saber mais sobre o adolescente da foto, mas o corretor não sabia responder e nem conseguia falar com os antigos donos da tecelagem. O empresário deu ombros e se concentrou no trabalho.
Numa volta â oficina,  Jairo veio recebê-lo com um colar cervical, explicando que as dores aumentaram. Mas podia ficar tranquilo que os reparos estavam em andamento. Giorgio olhou a moto suspensa no cavalete e sorriu satisfeito.

Nas semanas que se seguiram ele foi à oficina várias vezes conferir o andamento da restauração, e ficava feliz ao ver a rápida evolução. - Estou louco para dar a primeira volta! - Jairo respondeu: - dentro de,... Duas semanas... Desculpe, doutor Giorgio; essa coluna está me matando! - queixou-se.

Ele comentava com Ingrid, sua esposa, sobre a Big Twin, como se referia a ela, que seria uma grande surpresa ao seu filho Diego, que estava na Europa, em estudos, mas era aficionado em motocicletas. - Já pensou quando ele voltar e der com esta belezura na garagem? - Ingrid sorriu.
Numa ida à oficina, Jairo não estava e seu sócio Américo, o recebeu explicando: - Fique sossegado, doutor; sua moto será entregue na data prometida. Estamos virando a noite! - ele agradeceu e viu um mecânico trabalhando na Big Twin. Isto o tranquilizou. Américo também se queixava de dores no pescoço, mas dizia que era causada pela posição do corpo no trabalho: - Ossos do ofício, doutor!
Naquela noite, ele segurava a antiga foto na mão: o adolescente devia ter uns quinze ou dezesseis anos, e estava em pé ao lado da moto, segurando o guidão com as duas mãos. Tinha cabelos claros e curtos. Se detendo mais na foto, percebeu que algo tinha sido escrito a lápis  num canto, mas se apagou na superfície brilhante da foto. Giorgio posicionou a foto obliquamente à luz para tentar ver ranhuras feitas pelo lápis; parecia um bilhete ou algo assim. No dia seguinte pediria auxílio para examiná-la com algum recurso digital.
Sempre ia à oficina e a encontrava vazia, apenas com serventes, mas sempre havia um mecânico trabalhando na moto. Ele aproximou e perguntou: - E então, tudo bem aí? - o rapaz respondeu fazendo sinal positivo com a cabeça sem olha-lo. Então Giorgio se afastou para não perturbá-lo. Sabia que alguns mecânicos não eram afeitos à conversas, e achou bom, porque estes eram os melhores.

Em uma semana a moto ficou pronta e ele podia buscá-la. Porém, Diego chegou de viagem de surpresa, e o pai logo lhe falou da Indian,  mostrando etapas da sua restauração e também aquela foto antiga. O rapaz se entusiasmou e disse: - Eu quero ser o primeiro a pilotar esta relíquia, pai! - E saíram rumo à oficina.
Lá estava a Indian Chief Big Twin amarela brilhando como nova, com cromados e raios das rodas reluzentes. - Que fantástico Américo! Parabéns! - olhou em torno: - Onde está Jairo? - ele ia responder mas Diego logo montou na moto e ligou seu motor com um ronco vigoroso. - Nossa, pai! Que máquina! - Giorgio sorriu mas notou algo: - A lente do farol dianteiro, ainda está trincada? - Américo olhou: - É mesmo! Puxa vida, doutor; perdão, eu não notei que quebrou novamente. Vamos ter que esperar mais uns dias, porque esta peça tem que vir dos Estados Unidos.
Diego retrucou: - Ah não!... Quero ir para casa nela, agora! Depois trago de volta para arrumar.
- Está bem, filho! - respondeu Giorgio enquanto o rapaz punha o capacete e acelerava, saindo pelo portão da garagem, mas antes de sair à rua deu voltas no pátio da oficina para se acostumar a maneira de guiá-la.
Américo se desculpava: - Foi um vacilo!... Ah, mas depois do que aconteceu, perdemos um pouco o prumo e tivemos que virar noites nos serviços para dar conta, e o do senhor tinha prioridade!
- Sim, eu vi que sempre havia um mecânico mexendo na moto sempre que vinha aqui, muito calado!... Mas o que aconteceu?
- Bem doutor; evitamos comentar porque foi algo muito triste;  Jairo morreu! - cobriu o rosto com as mãos: - Cometeu suicídio!
- Como é?... Suicídio?
- Sim. - apontou uma viga. - Se enforcou ali. Não sabemos o que o levou a isto. - Giorgio se espantou enquanto ele prosseguiu: - Como trabalho noutra coisa de dia, eu tive que trabalhar na sua moto apenas à noite!
Ele retrucou: -  Mas sempre havia um mecânico mexendo na Big Twin todas as vezes que vim aqui de dia!
- Isto é impossível!... Mesmo o Jairo, só trabalhava nela ao fim do expediente, na tardinha.
- Não, eu vinha sempre por volta do meio dia. Tenho fotos, veja! - ia mostrá-las no celular, mas para sua surpresa, só aparecia a moto sobre o cavalete.
Neste momento Diego saiu à rua dizendo: - Estou craque pai!... Te vejo em casa!
Ele não ouviu-o. - Mas,... Havia um rapaz sempre mexendo nela! Era loiro e,... - Ocorreu-lhe algo absurdo, e lembrou-se da antiga foto: o adolescente de 1955 era loiro.
Subitamente ouviu-se o eco grave de uma freada brusca de caminhão, e gritos...

No sepultamento de Diego, seu pai era um homem destruído. Ingrid sequer conseguiu ia ao cemitério, e teve uma crise nervosa acusando Giorgio pela tragédia. Nem precisava, por que ele se sentia terrivelmente culpado.
Dias depois, no escritório da construtora, ele era a própria imagem da desolação e já pensava em fazer uma reunião de acionistas para comunicar que sairia da presidência do grupo empresarial, pois já não se sentia capaz. Sua esposa já falava em separação, e ele havia saído de casa. O mundo desmoronava ao seu redor.
Numa tarde, ele tentava se concentrar no trabalho quando a secretária entrou e lhe entregou um envelope enviado pelo designer gráfico que examinou a foto de 1955. Irritado, ele o jogou na mesa. - Que importa isto agora? - pensou. Mas depois se acalmou e o abriu. O designer tinha conseguido resgatar os escritos apagados da foto, e era um espécie de ameaça: "Ninguém jamais poderá possuir esta máquina. Ela é minha e eu amaldiçoo quem ousar tentar.". Assustado Giorgio largou o papel na mesa: - Que diabo é isto?... Que coisa é esta? - perguntava-se. Lembrou das fotos que fez da moto no cavalete com o mecânico loiro trabalhando nela, que, quando foi ver, trazia apenas a moto. Ele ficou um bom tempo na solidão da sua sala tentando compreender aquilo. Então fez uma ligação ao corretor e lhe ordenou que encontrasse os donos da antiga tecelagem e descobrisse quem era o proprietário da moto em 1955. Pagaria o que fosse preciso por esta informação!

Uma semana depois Giorgio chegava à entrada de uma casa modesta em Nova Lima, cidade próxima a Belo Horizonte. Era ali que vivia Roberto Santos, homem idoso, que foi o dono da tecelagem na década de 1950 que o recebeu com cortesia e curiosidade, pois não lhe foi revelado o assunto daquele encontro.
 - Por favor, senhor Giorgio, não repare a bagunça. Com a parte que me coube da venda dos galpões, vou comprar um apartamento. - Giorgio sorriu um tanto sem graça, e Roberto perguntou: - O senhor é o comprador da tecelagem; há algum problema no negócio? - ele respondeu: - Não, absolutamente! Vou ser direto, senhor Roberto! - mostrou-lhe a foto de 1955. O velho empresário se assustou, e perguntou: - Onde o senhor conseguiu isto? - Giorgio começou a explicar o caso da motocicleta Indian emparedada que pretendia restaurar, e relatou passo a passo todo o ocorrido. Ao final, abaixou a cabeça e disse: - Perdi meu único filho,... Eu preciso de respostas. senhor Roberto. Leu o que está escrito na foto? - ele assentiu. - Sim! Eu confesso que estou surpreso e confuso. Nunca imaginei que a Indian estivesse escondida na tecelagem. - Giorgio olhou-o e suplicou: - Por favor, eu estou passando o pior momento de toda minha vida, e nem, sei como isto aconteceu. Só sei que tem a ver com esta maldita motocicleta! - Roberto andou pela sala segurando a foto e falou: - Eu sabia que havia algo errado,... O rapaz que está na foto, era Pedro, meu único filho no dia do seu aniversário de dezesseis anos. - respirou fundo e concluiu. - Ele morreu dois anos depois, num sanatório. Pedro era psicótico! - então sentou-se começou a relatar  trajetória de seu filho único, um menino introspectivo e isolado que colecionava qualquer coisa relacionada a motocicletas: de recortes em jornais e revistas à brinquedos. - A princípio parecia algo inocente, mas foi se tornando mais e mais obsessivo a ponto dele ficar o tempo todo trancado no quarto onde afirmava ouvir vozes! Minha mulher era espiritualista e julgou que fosse alguma manifestação mediúnica. Ah, quanta besteira, devíamos tê-lo levado a um psiquiatra! - ele prosseguiu falando das sessões espíritas realizadas em casa, que faziam Pedro se considerar uma pessoa especial. - Foi um grande erro que potencializou seus delírios. - ele disse que a obsessão por motocicletas aumentava, então tiveram a pior ideia de suas vidas: compraram-lhe uma moto real: a Indian Chief Twin Bean 80, em 1953. Mas havia uma condição: Pedro só poderia possuí-la de fato depois dos dezoito anos. - Ele aceitou, e levamos a moto para a garagem da tecelagem, onde aguardaria. Nosso filho estava com quatorze anos,e passou a ir à tecelagem todos os dias, passando todo o tempo na garagem limpando-a. - olhou para o alto com lágrimas rolando a face; - Mas, como eu disse, havia algo muito errado acontecendo. Alguns empregados ouviram-no falando com a moto na garagem, como se fosse um pessoa viva! 
Eu me apavorei quando Pedro disse: "querem que eu pilote a moto, pai!" - Roberto lembrou-lhe o que haviam combinado, mas o filho se mostrava irredutível ao dizer:  "Foi o mestre que mandou!", e ao lhe perguntar: "Que mestre?", ele ria e dizia: "O mestre!".  Se passou um ano e Pedro cada vez mais obcecado pela moto. Então Roberto cometeu o segundo erro ao permitir que o filho a conduzisse apenas nas instalações da fábrica, aos finais de semana. - Foi muito estranho. Chamei um instrutor para lhe ensinar a guiar a moto, mas Pedro já sabia, e com muita desenvoltura! - abanou a cabeça: - Instaurou-se o inferno na tecelagem! - Roberto prosseguiu, explicando que Pedro ia à tecelagem de manhã à tarde e ficava dando voltas com a moto entre os galpões, e isto começou a incomodar empregados e seus sócios que, irritados, ordenaram que aquilo tivesse fim. - Eu o chamei e fui duro, discutimos e acabei ameaçando-o, dizendo que venderia a moto! A reação dele foi violenta; me empurrou e proferiu a frase que está nesta foto: "Ninguém mais poderá possuir esta máquina. Ela é minha e eu amaldiçoo quem ousar tentar!" E terminou dizendo que eram "ordens do mestre" antes de acelerar e sair à rua. Desesperado eu entrei no carro e saí atrás dele! - abanou a cabeça: - Não o encontrei, e voltei à firma. No dia seguinte recebemos a notícia que Pedro foi preso em flagrante, acusado de homicídio! Ele matou um empregado da tecelagem, e só dizia: "fiz da maneira que o mestre ordenou pai. Está tudo bem!" e não disse mais nada. -  suspirou: - Foi diagnosticado como portador de psicose e esquizofrenia, e como era menor de idade, foi enviado à um sanatório para crianças e jovens com  distúrbios mentais graves, Dois anos depois ele cometeu suicídio no sanatório, se enforcando com tiras dos lençóis que usou como corda,... Ele tinha só dezoito anos!
- Sinto muito senhor Roberto. Então, foi o senhor que emparedou a moto na tecelagem?
- Não fui eu! Mas agora, várias coisas começam a fazer sentido: a moto havia desaparecido, e quando eu perguntava seu paradeiro a Pedro, ele dava de ombros e não respondia O operário morto, era pedreiro e trabalhava em obras na fábrica. Era o único que conversava com Pedro e o ajudava com a moto, e certamente o ajudou a escondê-la atrás da parede falsa. Na sua loucura Pedro deve ter ficado com medo do rapaz o delatar, e o matou. E faz sentido também a onda de doenças e até suicídios que acometeu aos funcionários da tecelagem depois. Isto contribuiu para a decadência que levou à falência da empresa anos depois. Como vê, senhor Giorgio, esta é a história de uma sucessão de equívocos. Não sei o que dizer. Apenas peço perdão pela fraqueza que me impediu de fazer a coisa certa a tempo ! Sinto muito que tenha perdido seu filho.
O empresário respondeu: - Ambos perdemos, senhor Roberto. - levantou-se para sair. - Obrigado, e desculpe tê-lo feito recordar de coisas tão tristes.
- Não esqueço um só dia! O que o senhor vai fazer com a moto?
- Vou destruí-la!

O dono do ferro velho olhava a Indian que, mesmo trazendo arranhões pelo acidente, brilhava a luz do sol na carroceria de um das camionetes da construtora. - O doutor quer mesmo que eu coloque a motocicleta no triturador de metais, e a destrua?
- Exatamente isto, senhor Teixeira.
- Mas,... É uma moto antiga, uma relíquia muito rara! Se não a quer, me venda!
Impacientou-se: - Olhe, senhor Teixeira; eu não vim aqui atrás de conselhos e nem como negociante de antiguidades. Vou pagar para o senhor destruí-la até o ultimo parafuso, mas se não quiser, eu vou a outro lugar!
- Oh não! Claro doutor, me desculpe. Vou atendê-lo. Me deixe só ajustar o triturador. - Teixeira seguiu para trás da maquina que consistia numa caixa alta, de aço, onde peças cilíndricas e dentadas em aço maciço giravam conseguindo reduzir qualquer peça metálica a fragmentos. Teixeira subiu num guindaste, que apanhou a moto com garras e a ergueu, colocando-a na caixa. Depois desceu do guindaste e acionou a máquina, que emitiu barulhos ensurdecedores de metal sendo amassado e quebrado. Em seguida, fragmentos seguiam por uma esteira, caindo numa caçamba que seria levada á siderúrgica. - Pronto doutor! - falou Teixeira se aproximando: - Deu pena, mas se o senhor queria assim!
Giorgio lhe entregou o pagamento e respondeu antes de entrar na camioneta; - Obrigado. Tenha a certeza que fiz a coisa certa, porém tarde demais! - e saiu do ferro velho.
Teixeira apenas esperou que saísse para subir uma escada atrás da trituradora, onde havia uma caixa cheia de lã de metal rente a maquina. Ele olhou dentro e riu. 

Meses depois em Denver, no estado norte americano do Colorado, um jovem falava ao telefone:
- Yes, the bike was deliverd, and is wonderful! Deposited the rest of the payment to your account, Mr. Teixeira. Thank you! - ele desligou e falou à namorada: - It is amazing! They were going to destroy this rare Indian Chief Twin Bean '53 in a junkyard! Mr. Teixeira rescued it in time, and now it's here, with me!
Ela perguntou: - This bike has not value in Brazil?
Ele respondeu: - I don't know! The important thing is that I made como true dream! - olhava-a e ao alisar o para lamas dianteiro, exclamou: - Oh shit!
- What's happen?
- The headlight is broken! Maybe the shipping. - deu de ombros: - Not everything is perfect! Come on baby, let´s take a ride on the oldfashioned way!...

Fim.
  

tradução do dialogo em inglês:
- Sim, a moto foi entregue. É maravilhosa! Depositei o restante do pagamento na sua conta, Senhor Teixeira. Origado! - É incrível! Eles iam destruir esta rara Indian Chief Big Twin 1953 num ferro velho! O senhor Teixeira a resgatou a tempo, e agora ela está aqui, comigo!
- Esta moto não tem valor no Brasil?
- Eu não sei! O importante é que eu realizei um sonho! - Oh, merda!
- Que foi?
- O farol dianteiro está quebrado! Deve ter sido no transporte. - Nem tudo é perfeito! Venha amor, vamos dar um passeio a moda antiga!...
 
   


quarta-feira, 23 de outubro de 2019

DEFEITO NA TV.


Marcondes de Saints, meia idade e separado, finalmente conseguiu o que sempre quis: viver sozinho! Seu filho, Junior, havia assumido sua identidade gay e foi morar com o namorado, Igor. Para o pai, nada de novo, pois quando Junior lhe revelou isto, ele respondeu irônico: - Me fala uma coisa que eu saiba? - O problema estava no companheiro que ele arranjou: garoto estranho metido a bruxo que praticava magia negra. Marcondes abanava a cabeça ao pensar. - Esse meu filho tinha dedo podre para arranjar namorada antes de assumir, e nem depois que virou gay tomou jeito! - dava de ombros: - Bruxo de tutorial do YouTube. - riso,  - Que sejam felizes!
Outro problema em Junior foi a maneira que foi criado. Filho único, sempre teve tudo na mão e a hora; mas vivendo na sua própria casa o habito não mudou e sempre ligava para a mãe perguntando como se refogava o arroz; qual a quantidade de amaciante se colocava na maquina de lavar e outras coisas de casa. Ao pai restava resolver coisas mais rudes, como consertar encanamentos ou parafusar prateleiras na parede. Marcondes fazia tudo com muita paciência.
Uma noite ele se preparava para assistir ao jogo de futebol sagrado das quartas-feiras na TV, com os pés na mesa de centro; isopor de cerveja e pacotes de salgadinhos a postos - Nada como a solidão da casa sem esposa para amolar. - pensava enquanto aguardava o seu Fluminense entrar em campo.
Então tocou o telefone, e era Junior: -  Alô filho, qual o problema agora?
- Pai,... É a televisão...
- Aquela novinha que tua mãe te deu?
- É pai!... Espera aí Igor!... Não!,... - fez barulho de telefone caindo.
- Alô?... Alô? O que está acontecendo aí Junior?
Ele voltou: - É a televisão pai!... Vem cá, por favor!
- Estou indo, estou indo! - desligou e foi procurando os chinelões para sair.
 Logo chegou à casa, e bateu na porta. - Junior, é o pai! Abre essa merda, anda. - a porta abriu e ele foi entrando: - O que aconteceu com a televisão?
- Ela tá ali!
- Que ela está ali, estou vendo! O que aconteceu com ela? - perguntou olhando a imagem embaçada,
- Aconteceu uma coisa...!
Marcondes interrompeu olhando para os lados: - Cadê o Igor?
- Não está aqui,... Mas aconteceu uma coisa,...
Cortando-o: - O que vocês arrumaram com a televisão, não me diga que já a estragaram?
- Não,... É que...
O interrompeu novamente. - Ô filho, tua mãe nem acabou de pagar e já escangalharam ela?
- Não, pai... É que...
Marcondes apanhou o controle remoto: - Está na TV aberta ou na paga?
- Pai, me deixa explicar: Eu e o Igor,...
- Cala a boca Junior! Você e seu namoradinho fizeram merda na televisão e me chamaram pra consertar, não é?
- Não pai,... É que,...
Marcondes mexia no controle. - Seja lá o que fizeram, foi com força. Travou!
- O Igor começou a fazer um experimento de magia...
-Cala a boca Junior, assim me atrapalha!
- Deixa eu explicar pai! Aí ele chamou uma entidade,...
- Entidade é coisa de macumbeiro!... Que merda, travou o controle todo!
- ... E veio uma coisa que a gente não entendeu!
- Cala a boca Junior! Macumbeiro de merda esse Igor; vocês ficam usando a TV para entrar no YouTube pra ver tutoriais de macumba, e fudeu a TV, cadê ele?
- Pois é pai!... O Igor ficou apavorado e fugiu!
- Ah é?... Fudeu a televisão que tua mãe te deu e meteu o pé? Viado e bundão!
- Não pai,... É pior! Aconteceu que,...
Marcondes aproximou da TV. - Cala boca Junior! Que raio de canal é esse que só aparece coisa embaçada no vídeo?
- Não tem canal nenhum pai!
- Como não tem? - aproximou mais.
- Pai,... Olha atrás da TV,... A tomada!
- O que que tem? - olhou-a e exclamou: - Que porra é esta?... Não está...!
- É isso que eu queria dizer pai; a televisão não está ligada!
Uma figura macabra apareceu no vídeo e urrou. 

Os dois correram apavorados pela rua:
- Pai,...!
- Cala boca e corre Junior!... Corre!

Fim.
 

domingo, 20 de outubro de 2019

A CASA DA VERDADE.


Cemitérios são o território onde a história encontra seu final. Os espíritas adeptos das religiões afro-brasileiras os definem como "casas da verdade" porque a terra cobrirá a todos, independente do seu status na terra, mesmo aqueles sepultados sem nome.
Ocorre que mesmo abrigando apenas cadáveres, vez por outra as necrópoles (cidades dos mortos), precisam passar por obras, e foi o que ocorreu numa parte muito antiga do Cemitério da Glória.
Foi preciso abrir um buraco numa das alamedas por conta de uma infiltração que afundou o piso, e danificou um sepulcro, não restando outra alternativa senão demoli-lo e remover os despojos ao ossário. Se tratava de um túmulo quase em ruínas, mas ainda com alguns  adereços decorativos e uma placa de mármore bastante deteriorada onde lia-se: "Aghatha Hantau. 1879 - 1882". Um túmulo de criança.
Assim, sem muito esforço os coveiros do cemitério removeram sua tampa, revelando a pequena urna de madeira de lei com marcas de cupins. Um dos coveiros observou que apesar dos cento e trinta e sete anos que esteve sepultada, a urna estava em bom estado com entalhes ainda intactos. Cuidadosamente retiraram-na do sepulcro, arrebentaram os cravos enferrujados que prendiam a tampa, e a abriram.
- Mas,... o que é isto? - exclamou padre Marcato, o administrador do cemitério ao ver que a urna continha apenas uma boneca. Outros vieram olhar, e era verdade, pois não havia nenhum corpo, apenas a boneca de porcelana, já craquelada pelo tempo e com sua roupinha roída de traças, assim como seu cabelo, deixando-a com a cabecinha nua. Seus olhinhos estavam fechados e havia um rosário de metal dourado enrolado nas mãozinhas postas sobre o peito. - Uai? Cadê o corpo? - se perguntaram.
 Algumas conclusões pareciam óbvias: a menina teria quatro anos quando morreu e foi sepultada com sua boneca favorita, o que nem era tão incomum, porque em outras ocasiões foram encontrados brinquedos junto aos ossos de crianças ali sepultadas. Só que não haviam ossos humanos na urna, apenas a boneca de porcelana, o que lavava á outra conclusão óbvia: - Em algum momento, o túmulo foi violado e roubaram os ossos! - afirmou  padre Marcato aos coveiros e demais funcionários do cemitério que estavam reunidos na administração discutindo o caso.
Paulinho, um dos coveiros falou: - Mas padre, o túmulo estava fechadinho, até com lodo nos rejuntes dos tijolos aparentes, porque o reboco já tinha caído todo!
Marcato argumentou: - Não estou dizendo que foi recentemente, mas em algum momento, este túmulo foi violado e roubaram o cadáver da criança!
Paulinho contra-argumentou: - Deve ter sido a muito tempo! O padre viu como os cravos da urna estavam colados de tanta ferrugem.
Chinthia, a secretária chegou à sala, explicando: - Não encontrei maiores informações sobre a identificação do túmulo. - trazia um livro muito antigo com uma página marcada: - Mas aqui há o apontamento do sepultamento da...  "innocente Aghatha Hantau fallecida no dia de 20 de outubro do anno de 1882, sepultada em jazigo perpétuo em nome da princesa Maria Escolástica Hantau".
Marcato exclamou: - Ora! Então a mãe da menina era uma princesa?
Chinthia respondeu: - É o que consta no livro. Eu estou procurando informações sobre esta pessoa, mas está muito difícil. Não é incomum que em se tratando de jazigos tão antigos não existam mais membros da família vivos.
O padre pôs a mão no queixo: - Conheço pessoas ligadas ao estudo da realeza que talvez possam nos dar indicação de quem foi esta princesa,
Paulinho coçou a cabeça por baixo do boné e lembrou: - Essa tal de Maria Escolástica, está enterrada aqui também! - todos o olharam e Marcato perguntou: - Onde? - ele respondeu: - Do lado do túmulo da menina tem outro parecido, mas sem identificação. Quando eu vim trabalhar aqui, a placa de mármore ainda estava no lugar, mas desprendeu e quebrou. Aí a gente fez o que faz nesses túmulos antigos que não pagam taxa de manutenção: jogamos os cacos fora!
Chinthia folheou o livro e falou: - Na mosca Paulinho! - mostrou a página: - "Aqui está sepultada a Princesa Maria Escolástica Hantau fallecida  no dia de 22 de outubro do anno de 1882 sepultada em jazigo perpétuo". Que triste; a mãe morreu dois dias depois da filha! Será que deveríamos exumar também o túmulo dela? Quem sabe não sepultaram mãe e filha no mesmo lugar!
Marcato respondeu: - Isto não faz muito sentido, pois a mãe morreu depois. Mas,... Poderia ter sido seu ultimo pedido a colocação do corpo da filha junto ao dela. - dirigiu-se a Paulinho: - Vamos abrir o túmulo da princesa para conferir!
Assim o fizeram. Abriram o sepulcro da princesa, e encontraram a urna totalmente deteriorada com madeiras apodrecidas se esfarelando sobre os ossos brancos do esqueleto já sem qualquer vestígio das vestes. Com luvas, Paulinho revolveu os despojos e concluiu: - É, padre Marcato, aqui só tem ossos de uma pessoa adulta.
- Os ossinhos de uma criança poderiam ter se decomposto nestes cento de trinta e sete anos?
- Não Chinthia. - respondeu o padre: - Os restos mortais de uma criança de quatro anos resistiriam. O fato é que, em algum momento, em todos estes anos, alguém roubou o cadáver ou os ossos da criança, mas deixou a boneca! - abanou a cabeça. - Neste mundo tem maluco para tudo!
- O que a gente faz? - perguntou Paulinho: - Enterra a princesa novamente?
- Sim! - olhou o relógio. - Mas deixe para amanhã. Já são seis da tarde, e daqui a pouco vai escurecer. Cubra tudo com um plástico.
- Certo padre. Depois vou aproveitar e começar a preparar as coisas porque amanhã tem enterro!
Enquanto voltavam á administração, Chinthia lembrou: - Hoje ficaremos até mais tarde para organizarmos aquelas documentações pendentes?
- Sim, passou da hora de fazermos isto! - respondeu Marcato entrando no escritório. A boneca estava embrulhada em plástico bolha numa prateleira e Chinthia perguntou: - O que vamos fazer com a boneca? - ele deu de ombros: - Não sei! Acho que o que fazemos sempre com os despojos dos túmulos.
- Jogar fora?
- Melhor dizer, descartar! Vamos ao trabalho porque não quero sair daqui muito tarde!

Passava das 21hs e eles ainda não terminaram. - Nossa, padre: não chegamos nem na metade do serviço!
- É verdade. Não vai dar para concluir. Vamos terminar apenas o que iniciamos, e o resto fica para amanhã! Tem café pra gente aguentar?
- Vou fazer um expresso! - falou Chinthia rumo á copa.
Marcato ficou um tempo se esticando na cadeira, olhou a boneca e pensou: - É falta de respeito jogar fora! Acho vou colocá-la junto aos ossos da princesa. - levantou-se, apanhou a boneca e a olhou. Ainda trazia o rosário nas mãozinhas, e ele o pegou: - Ora essa! - examinou mais de perto: - É ouro!
Chinthia entrou trazendo o café: - O que disse?
- O rosário nas mãos da boneca, é de ouro puro, e essas pedrinhas no crucifixo não são vidro; são rubis! - coçou a orelha atrás dos óculos: - Que tipo de ladrão de túmulos levaria os ossos e deixaria para trás esta joia? - então seu celular chamou, era uma mensagem do seu amigo historiador da realeza. Ele ia abrir quando veio uma ligação de Paulinho, e  resolveu atendê-lo primeiro: - O que foi Paulinho?
- Padre! - falou assustado: - Venha aqui no cemitério!... Tem uma coisa muito esquisita acontecendo aqui! - ele perguntou: - O que é? Algum invasor? - a resposta foi cortada: - Não, é.... - ouviu barulho de correria e portão fechando ,e a ligação caiu. - Alô?... Paulinho, o que foi?
- O que aconteceu padre?
- Não sei Chinthia! Olhe, fique aqui e chame a polícia, deve ser algum desses viciados que pulam o muro da rua de trás e entram para se drogar!  - e saiu correndo.
Logo chegou a uma passagem atrás da Igreja da Glória que dá acesso ao cemitério, e ao meio do caminho, deparou com Paulinho vindo em disparada e muito assustado. - Corre padre, corre!
Marcato o deteve: - Pare! O que aconteceu? 
O homem tremia e estava branco. Mal conseguia falar: - Uma coisa,... Uma coisa muito medonha, padre!... Eles,... Eles,...
- Eles o quê?
Paulino apontou para trás: - Eles... Estão vindo!
Vinha um grupo de pessoas trajadas como no início do século XX trazendo velas nas mãos e entoando cânticos religiosos. - O que é isto?... - perguntou o padre já assustado também.
- Eles vieram daquela parte antiga do cemitério!... Saíram dos túmulos!
Marcato olhou-os e ameaçou: - Se for brincadeira de Halloween, podem parar porque eu já chamei a polícia!... - o grupo se aproximava e o vento tremulava as árvores do bosque, no entanto as chamas das velas permaneciam eretas. A frente do grupo vinha uma mulher magra trajando um vestido negro e véu, também negro, que lhe cobria a face, Conforme se aproximavam, pareciam etéreos, como se caminhassem flutuando. - Vamos saiu daqui padre!... Isso aí não é Halloween nada!... É o capeta! - e os dois correram. Paulinho quis seguir a um acesso que dava na entrada do cemitério, mas Marcato lembrou: - Não! Nós precisamos buscar Chinthia no escritório! - e correram à administração.  
 Encontraram-na com telefone na mão e dizendo: - Não consegui ligar á polícia do celular e nem do fixo,... O que aconteceu?
Eles entraram afoitos e fechando a porta de trás. Marcato falou. - Vamos sair daqui Chinthia, agora! - tentou abrir a porta da frente, mas ela não abria. Nisto, as luzes apagaram. - Meu deus, o que é isto? - ele respondeu tentando abrir outras portas: - Não sabemos! - Paulinho tentava arrombar uma porta de acesso à igreja. - Não abre!... Minha Nossa senhora da Glória! 
Então o cântico ficou mais alto, e vinha do corredor de acesso. A porta se abriu, iluminando o escritório com a claridade das velas. A estranha mulher do véu vinha adiante do séquito de criaturas tão etéreas quanto ela. Marcato reconheceu-os como alguns antigos sacerdotes sepultados no cemitério. A mulher chegou perto dele, levantou o véu mostrando uma face muito magra com olhos brancos, e falou. - Eu quero a minha filha!... Dê-me a minha Aghatha e eu voltarei à paz! 
Acuado no canto, Marcato não sabia o que dizer: - Eu,... Não sei,... - então se deu conta de algo, e apanhou a boneca. A mulher estendeu os braços e ele entregou-a. A mulher sorriu e, com a boneca nos braços, falou:- Não precisas chorar mais, meu anjo, mamãe está aqui! - a boneca esfarrapada, suja e sem cabelos, milagrosamente ganhou cachos dourados, touca e vestido cor de rosa cheio de bordados e rendas. A mulher aninhou-a mais ainda nos braços e falou: - Agora podemos voltar a descansar! - e se virou, seguindo ao corredor acompanhada pelo séquito de figuras etéreas que iam entoando musicas sacras em latim
O padre os seguiu, acompanhado por Chinthia e Paulinho. 
Ao chegarem ao cemitério, o estranho cortejo seguiu à parte antiga, próximo a uma capela, e foram se desintegrando aos poucos, um a um, até que a escuridão e o silêncio tomou conta do lugar. Então a energia elétrica restabeleceu-se com luzes voltando aos postes. Padre Marcato, Chinthia e Paulinho se aproximaram das ruínas do túmulo da boneca, e lá estava a urna, como se nunca a tivessem tocado. O padre ordenou: - Paulinho; amanhã cedo, reconstrua o túmulo. Vou informar á cúria que os restos mortais da menina Aghatha estava junto a mãe no seu túmulo. Vamos deixá-las em paz!
- Mas, porque tinha uma boneca sepultada como se fosse uma criança? - perguntou Chinthia.
- Talvez eu tenha a resposta! - o padre lembrou da mensagem que recebeu do amigo historiador e a abriu: "Maria Escolástica Hantau foi uma princesa que teria vindo da região do Ródope, na Bulgária, e decidiu viver no Brasil. Era tida como louca, e uma das suas excentricidades era criar uma boneca como se fosse sua filha, porque desejava ser mãe e não podia. Ela morreu tuberculosa em 1882. Espero que esta informação lhe seja útil, Padre Marcato. Um abraço; Jean." 
Os três ficaram em silêncio por uns instantes na certeza que nunca mais veriam a "casa da verdade" com os mesmos olhos. E se retiraram.

Fim