domingo, 20 de outubro de 2019

Cemitérios são o território onde a história encontra seu final. Os espíritas adeptos das religiões afro-brasileiras os definem como "casas da verdade" porque a terra cobrirá a todos, independente do seu status na terra, mesmo aqueles sepultados sem nome.
Ocorre que mesmo abrigando apenas cadáveres, vez por outra as necrópoles (cidades dos mortos), precisam passar por obras, e foi o que ocorreu numa parte muito antiga do Cemitério da Glória.
Foi preciso abrir um buraco numa das alamedas por conta de uma infiltração que afundou o piso, e danificou um sepulcro, não restando outra alternativa senão demoli-lo e remover os despojos ao ossário. Se tratava de um túmulo quase em ruínas, mas ainda com alguns  adereços decorativos e uma placa de mármore bastante deteriorada onde lia-se: "Aghatha Hantau. 1879 - 1882". Um túmulo de criança.
Assim, sem muito esforço os coveiros do cemitério removeram sua tampa, revelando a pequena urna de madeira de lei com marcas de cupins. Um dos coveiros observou que apesar dos cento e trinta e sete anos que esteve sepultada, a urna estava em bom estado com entalhes ainda intactos. Cuidadosamente retiraram-na do sepulcro, arrebentaram os cravos enferrujados que prendiam a tampa, e a abriram.
- Mas,... o que é isto? - exclamou padre Marcato, o administrador do cemitério ao ver que a urna continha apenas uma boneca. Outros vieram olhar, e era verdade, pois não havia nenhum corpo, apenas a boneca de porcelana, já craquelada pelo tempo e com sua roupinha roída de traças, assim como seu cabelo, deixando-a com a cabecinha nua. Seus olhinhos estavam fechados e havia um rosário de metal dourado enrolado nas mãozinhas postas sobre o peito. - Uai? Cadê o corpo? - se perguntaram.
 Algumas conclusões pareciam óbvias: a menina teria quatro anos quando morreu e foi sepultada com sua boneca favorita, o que nem era tão incomum, porque em outras ocasiões foram encontrados brinquedos junto aos ossos de crianças ali sepultadas. Só que não haviam ossos humanos na urna, apenas a boneca de porcelana, o que lavava á outra conclusão óbvia: - Em algum momento, o túmulo foi violado e roubaram os ossos! - afirmou  padre Marcato aos coveiros e demais funcionários do cemitério que estavam reunidos na administração discutindo o caso.
Paulinho, um dos coveiros falou: - Mas padre, o túmulo estava fechadinho, até com lodo nos rejuntes dos tijolos aparentes, porque o reboco já tinha caído todo!
Marcato argumentou: - Não estou dizendo que foi recentemente, mas em algum momento, este túmulo foi violado e roubaram o cadáver da criança!
Paulinho contra-argumentou: - Deve ter sido a muito tempo! O padre viu como os cravos da urna estavam colados de tanta ferrugem.
Chinthia, a secretária chegou à sala, explicando: - Não encontrei maiores informações sobre a identificação do túmulo. - trazia um livro muito antigo com uma página marcada: - Mas aqui há o apontamento do sepultamento da...  "innocente Aghatha Hantau fallecida no dia de 20 de outubro do anno de 1882, sepultada em jazigo perpétuo em nome da princesa Maria Escolástica Hantau".
Marcato exclamou: - Ora! Então a mãe da menina era uma princesa?
Chinthia respondeu: - É o que consta no livro. Eu estou procurando informações sobre esta pessoa, mas está muito difícil. Não é incomum que em se tratando de jazigos tão antigos não existam mais membros da família vivos.
O padre pôs a mão no queixo: - Conheço pessoas ligadas ao estudo da realeza que talvez possam nos dar indicação de quem foi esta princesa,
Paulinho coçou a cabeça por baixo do boné e lembrou: - Essa tal de Maria Escolástica, está enterrada aqui também! - todos o olharam e Marcato perguntou: - Onde? - ele respondeu: - Do lado do túmulo da menina tem outro parecido, mas sem identificação. Quando eu vim trabalhar aqui, a placa de mármore ainda estava no lugar, mas desprendeu e quebrou. Aí a gente fez o que faz nesses túmulos antigos que não pagam taxa de manutenção: jogamos os cacos fora!
Chinthia folheou o livro e falou: - Na mosca Paulinho! - mostrou a página: - "Aqui está sepultada a Princesa Maria Escolástica Hantau fallecida  no dia de 22 de outubro do anno de 1882 sepultada em jazigo perpétuo". Que triste; a mãe morreu dois dias depois da filha! Será que deveríamos exumar também o túmulo dela? Quem sabe não sepultaram mãe e filha no mesmo lugar!
Marcato respondeu: - Isto não faz muito sentido, pois a mãe morreu depois. Mas,... Poderia ter sido seu ultimo pedido a colocação do corpo da filha junto ao dela. - dirigiu-se a Paulinho: - Vamos abrir o túmulo da princesa para conferir!
Assim o fizeram. Abriram o sepulcro da princesa, e encontraram a urna totalmente deteriorada com madeiras apodrecidas se esfarelando sobre os ossos brancos do esqueleto já sem qualquer vestígio das vestes. Com luvas, Paulinho revolveu os despojos e concluiu: - É, padre Marcato, aqui só tem ossos de uma pessoa adulta.
- Os ossinhos de uma criança poderiam ter se decomposto nestes cento de trinta e sete anos?
- Não Chinthia. - respondeu o padre: - Os restos mortais de uma criança de quatro anos resistiriam. O fato é que, em algum momento, em todos estes anos, alguém roubou o cadáver ou os ossos da criança, mas deixou a boneca! - abanou a cabeça. - Neste mundo tem maluco para tudo!
- O que a gente faz? - perguntou Paulinho: - Enterra a princesa novamente?
- Sim! - olhou o relógio. - Mas deixe para amanhã. Já são seis da tarde, e daqui a pouco vai escurecer. Cubra tudo com um plástico.
- Certo padre. Depois vou aproveitar e começar a preparar as coisas porque amanhã tem enterro!
Enquanto voltavam á administração, Chinthia lembrou: - Hoje ficaremos até mais tarde para organizarmos aquelas documentações pendentes?
- Sim, passou da hora de fazermos isto! - respondeu Marcato entrando no escritório. A boneca estava embrulhada em plástico bolha numa prateleira e Chinthia perguntou: - O que vamos fazer com a boneca? - ele deu de ombros: - Não sei! Acho que o que fazemos sempre com os despojos dos túmulos.
- Jogar fora?
- Melhor dizer, descartar! Vamos ao trabalho porque não quero sair daqui muito tarde!

Passava das 21hs e eles ainda não terminaram. - Nossa, padre: não chegamos nem na metade do serviço!
- É verdade. Não vai dar para concluir. Vamos terminar apenas o que iniciamos, e o resto fica para amanhã! Tem café pra gente aguentar?
- Vou fazer um expresso! - falou Chinthia rumo á copa.
Marcato ficou um tempo se esticando na cadeira, olhou a boneca e pensou: - É falta de respeito jogar fora! Acho vou colocá-la junto aos ossos da princesa. - levantou-se, apanhou a boneca e a olhou. Ainda trazia o rosário nas mãozinhas, e ele o pegou: - Ora essa! - examinou mais de perto: - É ouro!
Chinthia entrou trazendo o café: - O que disse?
- O rosário nas mãos da boneca, é de ouro puro, e essas pedrinhas no crucifixo não são vidro; são rubis! - coçou a orelha atrás dos óculos: - Que tipo de ladrão de túmulos levaria os ossos e deixaria para trás esta joia? - então seu celular chamou, era uma mensagem do seu amigo historiador da realeza. Ele ia abrir quando veio uma ligação de Paulinho, e  resolveu atendê-lo primeiro: - O que foi Paulinho?
- Padre! - falou assustado: - Venha aqui no cemitério!... Tem uma coisa muito esquisita acontecendo aqui! - ele perguntou: - O que é? Algum invasor? - a resposta foi cortada: - Não, é.... - ouviu barulho de correria e portão fechando ,e a ligação caiu. - Alô?... Paulinho, o que foi?
- O que aconteceu padre?
- Não sei Chinthia! Olhe, fique aqui e chame a polícia, deve ser algum desses viciados que pulam o muro da rua de trás e entram para se drogar!  - e saiu correndo.
Logo chegou a uma passagem atrás da Igreja da Glória que dá acesso ao cemitério, e ao meio do caminho, deparou com Paulinho vindo em disparada e muito assustado. - Corre padre, corre!
Marcato o deteve: - Pare! O que aconteceu? 
O homem tremia e estava branco. Mal conseguia falar: - Uma coisa,... Uma coisa muito medonha, padre!... Eles,... Eles,...
- Eles o quê?
Paulino apontou para trás: - Eles... Estão vindo!
Vinha um grupo de pessoas trajadas como no início do século XX trazendo velas nas mãos e entoando cânticos religiosos. - O que é isto?... - perguntou o padre já assustado também.
- Eles vieram daquela parte antiga do cemitério!... Saíram dos túmulos!
Marcato olhou-os e ameaçou: - Se for brincadeira de Halloween, podem parar porque eu já chamei a polícia!... - o grupo se aproximava e o vento tremulava as árvores do bosque, no entanto as chamas das velas permaneciam eretas. A frente do grupo vinha uma mulher magra trajando um vestido negro e véu, também negro, que lhe cobria a face, Conforme se aproximavam, pareciam etéreos, como se caminhassem flutuando. - Vamos saiu daqui padre!... Isso aí não é Halloween nada!... É o capeta! - e os dois correram. Paulinho quis seguir a um acesso que dava na entrada do cemitério, mas Marcato lembrou: - Não! Nós precisamos buscar Chinthia no escritório! - e correram à administração.  
 Encontraram-na com telefone na mão e dizendo: - Não consegui ligar á polícia do celular e nem do fixo,... O que aconteceu?
Eles entraram afoitos e fechando a porta de trás. Marcato falou. - Vamos sair daqui Chinthia, agora! - tentou abrir a porta da frente, mas ela não abria. Nisto, as luzes apagaram. - Meu deus, o que é isto? - ele respondeu tentando abrir outras portas: - Não sabemos! - Paulinho tentava arrombar uma porta de acesso à igreja. - Não abre!... Minha Nossa senhora da Glória! 
Então o cântico ficou mais alto, e vinha do corredor de acesso. A porta se abriu, iluminando o escritório com a claridade das velas. A estranha mulher do véu vinha adiante do séquito de criaturas tão etéreas quanto ela. Marcato reconheceu-os como alguns antigos sacerdotes sepultados no cemitério. A mulher chegou perto dele, levantou o véu mostrando uma face muito magra com olhos brancos, e falou. - Eu quero a minha filha!... Dê-me a minha Aghatha e eu voltarei à paz! 
Acuado no canto, Marcato não sabia o que dizer: - Eu,... Não sei,... - então se deu conta de algo, e apanhou a boneca. A mulher estendeu os braços e ele entregou-a. A mulher sorriu e, com a boneca nos braços, falou:- Não precisas chorar mais, meu anjo, mamãe está aqui! - a boneca esfarrapada, suja e sem cabelos, milagrosamente ganhou cachos dourados, touca e vestido cor de rosa cheio de bordados e rendas. A mulher aninhou-a mais ainda nos braços e falou: - Agora podemos voltar a descansar! - e se virou, seguindo ao corredor acompanhada pelo séquito de figuras etéreas que iam entoando musicas sacras em latim
O padre os seguiu, acompanhado por Chinthia e Paulinho. 
Ao chegarem ao cemitério, o estranho cortejo seguiu à parte antiga, próximo a uma capela, e foram se desintegrando aos poucos, um a um, até que a escuridão e o silêncio tomou conta do lugar. Então a energia elétrica restabeleceu-se com luzes voltando aos postes. Padre Marcato, Chinthia e Paulinho se aproximaram das ruínas do túmulo da boneca, e lá estava a urna, como se nunca a tivessem tocado. O padre ordenou: - Paulinho; amanhã cedo, reconstrua o túmulo. Vou informar á cúria que os restos mortais da menina Aghatha estava junto a mãe no seu túmulo. Vamos deixá-las em paz!
- Mas, porque tinha uma boneca sepultada como se fosse uma criança? - perguntou Chinthia.
- Talvez eu tenha a resposta! - o padre lembrou da mensagem que recebeu do amigo historiador e a abriu: "Maria Escolástica Hantau foi uma princesa que teria vindo da região do Ródope, na Bulgária, e decidiu viver no Brasil. Era tida como louca, e uma das suas excentricidades era criar uma boneca como se fosse sua filha, porque desejava ser mãe e não podia. Ela morreu tuberculosa em 1882. Espero que esta informação lhe seja útil, Padre Marcato. Um abraço; Jean." 
Os três ficaram em silêncio por uns instantes na certeza que nunca mais veriam a "casa da verdade" com os mesmos olhos. E se retiraram.

Fim




 

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