Há lugares que não são apropriados para se falar em espíritos e fantasmas, e o Instituto Médico Legal é um deles, porque lá a morte é tão cotidiana como beber um copo d'água. Os cadáveres não são zumbis prontos a se levantarem, mas são capazes de dizer como a vida lhes foi tirada examinando-se seus corpos inertes.
Naquele dia, a médica legista, Doutora Eliana, chegava a sala de necropsias para o complicado trabalho de examinar um corpo naturalmente mumificado com um detalhe: estava decapitado. Ela apanhou o rascunho do laudo e o leu: - Exame de um cadáver encontrado as margens da Avenida Brasil, do sexo masculino; idade indeterminada; decapitado pós-mortem e que devia medir mais de dois metros de altura.
Seu assistente Zenon estava presente e observou: - Ele deve ter ficado sepultado em algum lugar altamente seco e calcário para ter esta conservação.
Ela completou: - Segundo o boletim de ocorrência, os policiais indicaram que poderia ser desova de traficantes, que costumam decapitar suas vítimas para impedir a identificação. - ela observou uma de suas mãos: - As impressões digitais não estão conservadas. - abanou a cabeça: - Sem o crânio, não temos como averiguar arcada dentária ou palato, assim fica impossível sua identificação. Vai ser mais um a ser sepultado como indigente!
- A doutora sempre fica angustiada quando não consegue identificar um cadáver.
- É lógico Zenon! Cada cadáver teve uma vida; pais, irmãos e amigos que podem estar a sua procura, e nós ficamos impotentes para lhes dar uma resposta!
- Se pudéssemos usar meios menos ortodoxos para identificá-los...
Eliana cortou-o: - Pode parar por aí porque sei que esta conversa vai chegar nas sessões espiritas que você frequenta, não é? - se aproximou do seu assistente: - Eu respeito suas crenças, mas olhe em volta e veja onde estamos e reflita se é o lugar certo para se pensar em espíritos!
- A doutora não acredita em parapsicologia?
- Aqui, não!
- Mas,... Nosso prédio bem que tem seus mistérios. Luzes que se acendem sozinhas; portas que batem e aqueles ruídos e gemidos que não sabemos de onde vêm.
Ela cruzou os braços e respondeu: - Estamos carecas de saber que os tais ruídos e gemidos vêm das geladeiras, que assim como as que temos em casa, fazem barulho. E quanto as luzes e portas; o problema é o desleixo de alguns em esquecer luzes acesas e portas abertas sem trancar! Olhe Zenon: se começarmos a nos deixar levar por estas considerações ocultistas, daqui a pouco vamos estar chamando cartomantes como auxiliares, ou apoiando os dedos em copos deslizantes perguntando se "tem alguém aí?" Não podemos perder o pragmatismo do nosso trabalho.
- Tudo bem doutora, eu entendo e acho que tem razão! E quanto ao cadáver; podemos recolher?
- Ainda não. Quero chamar um especialista em mumificação para identificá-lo. Talvez seu lugar seja num museu! - e cobriu-o com um lençol.
Na manhã seguinte Eliana estava sonolenta na mesa do café da manhã. Sua filha Elisa notou e perguntou: - Com sono mamãe, algum problema no trabalho?
- Sim! Mais um corpo impossível de identificar, que certamente será enterrado como indigente!
- Isto á incomoda, né? Faz lembrar do tio Mário.
- É verdade. Ele desapareceu há nove anos e não conseguimos saber seu paradeiro. Assim, qualquer corpo que não consigo identificar, é como se não conseguisse identificá-lo!... Ele pode ser um desses enterrados como indigente em algum lugar do mundo. - Elisa segurou sua mão, e ela sorriu falando: - Não ligue filha; são coisas da minha cabeça!... Apenas isto.
Mais tarde, no trabalho, era hora do almoço, mas Eliana fez apenas um lanche rápido, e voltou ao gabinete para terminar alguns laudos. Estava só. Então começaram os ruídos e gemidos, e ela resmungou: - Que coisa desagradável isto. Assim que tiver verba, vou solicitar inspeção nesses equipamentos!
Então escutou passos na sala das necropsias e perguntou: - Zenon, já voltou do almoço? - como não houve resposta, ela seguiu à sala para conferir, e estava vazia, apenas com o corpo mumificado em repouso na mesa. Eliana voltou ao gabinete, mas ao cruzar o corredor viu uma luz acesa na ultima sala, que era usada como depósito de ossadas sem identificação. Ela seguiu à ela e entrou, mas não havia ninguém. - Novamente terei que ser a chata que chama a atenção para luzes acesas e portas abertas! - se preparou para sair, mas entes que apagasse a luz, notou uma caixa de papelão na estante marcada com uma enorme marca preta de "X". Curiosa, ela chegou perto porque aquilo não era de praxe; então pegou a caixa e leu a etiqueta, que dava conta de um crânio sem identificação encontrado no aterro sanitário há cerca de quinze anos. Eliane colocou a mão na testa e pensou: - Será possível?... - apanhou o crânio, que era perfeito, inclusive sua dentição, e o levou a sala de necropsias. Posicionou-o na ultima vértebra da coluna cervical do corpo mumificado, e seu encaixe foi perfeito, assim como as proporções totalmente compatíveis. - Será que este crânio pertence a este corpo?... Se foi coisa do tráfico, até pode fazer sentido! - era preciso fazer exames para se ter certeza disto, assim ela voltou ao depósito para apanhar a caixa e coletar informações para preencher guias; mas quando a apanhou, não havia nenhuma marca. Eliana virava-a de todos os lados, e nada. Então escutou passos atrás de si e falou.: - É você Zenon? Você nem imagina o quê... - mal concluiu a frase para sentir uma mão forte a agarrando pelo pescoço e puxando-a: era a múmia com o crânio no pescoço que a segurava fortemente. Apavorada, ela não conseguia gritar enquanto aquela coisa horripilante e fétida a arrastou até uma bancada e começou a sufocá-la com as duas mãos. Ela ainda apanhou um bisturi e tentou atingir o monstro na barriga, mas era inútil pois parecia estar perfurando um boneco de palha.
Eliana foi desfalecendo, até que um machado atingiu o crânio, arrancando-o do pescoço; era Zenon que começou a golpear os braços da múmia até soltar a médica, que saiu ao chão. Mas mesmo decapitado, o mostro se lançou em Zenon, agarrando-o pelo pescoço na intenção de sufocá-lo. Ele ficou sem ação com o machado e acabou largando-o, e, inutilmente tentava se soltar, segurando os braços da múmia. Sufocado, em instantes ele começou a perder os sentidos e desmaiou. Eliana se recuperou e rapidamente apanhou o machado, e deu um forte golpe na coluna cervical da múmia, onde seria a medula. O monstro desabou ao chão de uma só vez, soltando Zenon. A médica correu ao seu auxílio, reanimando-o com massagem cardíaca. Ele acordou desesperado de medo e Eliana o amparou: - Calma, já acabou!
Mais tranquilos, e observando a múmia inerte esparramada no chão, Eliana perguntou. - O que é isto,... Que monstro é este?
- É uma múmia que pertencia ao acervo do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, e foi dada como destruída no incêndio! - tirou uns despojos do bolso do jaleco. - São bandagens que vieram junto á múmia, e esta etiqueta chamuscada com o seu numero de patrimônio. Ela chegou ao museu em 1927, e teria vindo de Cuzco, no Peru.
- Como ela foi parar na margem da Avenida Brasil. Será que roubada?
- Pensar que alguém tivesse se valido do caos do incêndio para roubá-la, parece plausível. Por que a abandonou depois, talvez nunca saibamos.
- E seu crânio, estava aqui há quinze anos?
- Para isto tenho resposta: ele foi roubado do acervo do museu em 1929! Alguém devia ter ciência disto, e quis evitar. - apanhou um papel e disse: - Há uma explicação para isto. Vou ler: "este servo de Ah Puch traiu os deuses, e como castigo deverá ser decapitado, e sua cabeça jamais poderá se unir ao corpo sob a pena de trazer de volta o demônio que habita. Apenas assim terá sossego." . É uma maldição Inca com mais de dois mil anos!
- Incrível! Mas como você descobriu isto Zenon?
Ele fez uma pausa, e respondeu: - Eu sei que a doutora não aprova, mas eu a desobedeci, e evoquei meus guias. Entrei num transe como nunca aconteceu, e quando voltei, este papel estava sobre a mesa. O espírito de luz que o psicografou se chama Mário, e ordenou que eu viesse aqui rápido em socorro de sua irmã querida.
Ao ouvir isto, Eliana caiu num choro compulsivo, e foi consolada por Zenon.
No dia seguinte comunicaram o encontro da múmia à Universidade Federal do Rio de Janeiro, e ela retornou ao acervo do Museu Nacional.
Já o crânio; jamais poderia reencontrar o corpo. Assim foi arrebentado a marretadas por Zenon e atirado ao alto mar.
Eliana agora sabia que seu irmão Mário estava morto, mas confortava-a imaginar que estivesse agora num plano espiritual, Ela manteve seu pragmatismo no trabalho.
Se bem que, ás vezes diante de um corpo sem identificação, se sentia tentada á buscar respostas no sobrenatural, perguntando: "tem alguém aí?"
FIM.
Excelente! Muito interessante e prende a atenção o tempo todo. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado!!!!
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