Paulo
se sentia feliz ao estacionar seu Hyundai HB20 á entrada daquela casa de campo,
cuja arquitetura mesclava estilo contemporâneo á antigos materiais de
demolição, digna de figurar nas melhores revistas de arquitetura e decoração!
Ele entrou junto á sua mulher Clara e Pablo, seu filho de dois anos e foram
capturando todos os detalhes nas retinas: antiguidades, sofás aconchegantes
cheios de almofadas e uma galeria de velhas fotos no corredor para melhor
compor o ambiente. Uma delas estava torta e Paulo a endireitou com cuidado
antes de voltar à sala onde o filhinho brincava. Ele se aproximou de Clara por
trás, beijando-a no cangote. – Que casa linda; o doutor Flávio Levi foi muito
legal ao emprestar pra gente! – Clara sorriu de leve, observando o pequeno
Pablo já á vontade sentado no chão com seus dinossauros de brinquedo.
Eles decidiram não passear, optando pelo
descanso após a viagem, e á noite Paulo se esparramava no sofá adiante da TV
assistindo ao noticiário esperando o sono chegar, pois apesar do cansaço estava
exultante por poder usufruir daquele conforto numa deferência do patrão ao seu
auxiliar mais competente. Clara e Pablo já estavam dormindo e a TV em volume
baixo para não perturbar, sendo possível ouvir o farfalhar do vento nas árvores.
Paulo se afundou mais ainda no sofá deixando o corpo no abandono da preguiça
quando subitamente ouviu algo: perecia alguém calçando chinelos e vinha do
quarto. Como tinha suíte, imaginou que a mulher se levantou para ir ao banheiro
e tornou a relaxar no sofá. Instantes depois o barulho recomeçou, desta vez no
corredor. Ele se ergueu e chamou-a. – Clara; é você? – não houve resposta e o
ruído parou um instante, voltando em seguida. Intrigado, Paulo seguiu ao
corredor e o barulho cessou novamente, recomeçando na sala onde ele estava.
Enquanto andava em círculos pela sala ouviu o mesmo ruído, desta vez na
varanda. Ele abriu a porta com cuidado e viu que folhas largas de uma costela
de adão oscilavam ao vento e roçavam no gradil de madeira da amurada. Ele
abanou a cabeça e riu, depois entrou e desligou a TV, seguindo ao quarto. Clara
dormia de lado, encolhidinha. Ele se deitou fazendo conchinha á mulher.
Na
manhã seguinte após o café, Paulo saiu com o filhinho para explorar o bosque. O
vizinho possuía cavalos e ele queria mostrá-los a Pablo. Clara não os
acompanharia, pois iria fazer o almoço utilizando o fogão de lenha. Ela
preparou os ingredientes na bancada e de repente pareceu ter escutado algo no
corredor da casa e seguiu para verificar. Não tinha ninguém, mas o som se
repetiu no lavabo, e ao entrar a porta fechou sozinha. Clara foi abri-la e se
deteve ao ouvir passos arrastando chinelos no corredor de um lado á outro. –
Paulo? ... É você? Não brinque assim! – nenhuma resposta. Então veio o temor de
algum invasor: talvez um assaltante.
Assustada, falou. – Eu não estou sozinha, meu marido está aí fora! Se
não falar quem é eu vou gritar! – as passadas cessaram. Então ela ouviu batidas
á porta. – Clara meu amor, o que está acontecendo? – era Paulo. Ela abriu a
porta se jogando nos seus braços e contou que escutou passos de alguém calçando
chinelos se arrastando no chão. Ele abanou a cabeça, tranquilizando-a e
mostrando a moita de costelas de adão que se debruçavam no gradil da amurada de
madeira fazendo ruídos ao tremular no vento e disse: – Somos bichos de cidade e
não conhecemos nada de roça! – riso. – Vai ver que a natureza anda arrastando
os chinelos, né? – e a abraçou. Clara olhava em torno ainda assustada.
Após
o almoço a jovem família foi passear. Foram á cachoeirinha já combinando um
mergulho na manhã seguinte, e depois seguiram ao pequeno povoado próximo; um
lugar aprazível com um parquinho na praça rodeada de bancos de madeira onde
eles poderiam namorar à moda antiga.
Á
noite o casal conversava quase desaparecendo no mar de almofadas coloridas do
sofá enquanto o pequeno Pablo dormia no quarto exausto de tantas aventuras. A
TV estava ligada e Paulo brincou. – Não acredito que você vai ver novela! – ela
respondeu. – O que mais tem pra fazer aqui de noite? – Paulo sorriu malicioso
ao dizer: - Tanta coisa! – e se abraçaram, preparando-se para o amor. Mas foram
interrompidos pelo barulho dos chinelos arrastando no chão no quarto onde Pablo
dormia. Sem pensar duas vezes os pais correram e o ruído desapareceu. Clara
falou. – Não foi uma planta balançando lá fora, o barulho veio de dentro de
casa... Não estou gostando disto! – Paulo coçou a cabeça sem resposta e o ruído
se repetiu na sala, mas ao chegarem era apenas silencio. Nervoso, ele saiu à
varanda e pediu que Clara trouxesse uma toalha que usaria para cobrir as
plantas evitando que se encostassem à grade de madeira, e os ruídos pararam.
A
madrugada seguia tranquila com a pequena família adormecida até Clara despertar
escutando algo estranho: parecia um murmúrio de vozes vindo de fora da casa.
Muitas vozes. Intrigada, ela acordou o marido. – Paulo, tem gente lá fora! –
ele já ia repetir que eram apenas sons da floresta quando o murmúrio recomeçou.
Devagar ele seguiu á janela que deixava ver a varanda, mas estava escuro demais
para enxergar qualquer coisa. Ele cochichou. - Vou acender as luzes da varanda
e do jardim. Fique aqui olhando da janela! – em instantes todas as luzes ao redor
da casa estavam acesas e Clara o viu chegar á varanda, olhar em torno e ainda
caminhar pelo jardim. Depois entrou dizendo. – Não vi ninguém. Quando acendi a
luz você viu alguém correr? – ela abanou a cabeça dizendo. – Não vi, e você não
devia ter ido lá fora,... – então ouviram o barulho no quarto e Pablo chorou.
Os dois voaram ate lá e o menino olhava a porta. O arrastar de chinelos
recomeçou na sala. Paulo seguiu ao corredor e falou. – Seja quem for; eu estou
armado! – blefou. – Vá embora! – trancou a porta do quarto, pegou o filho no
colo e deitaram-se os três na cama de casal. Em instantes o barulho e as vozes
cessaram. Custaram a dormir e deixaram todas as luzes externas acesas o resto
da noite.
Na
manhã seguinte Paulo seguiu à casa de Claudius, o vizinho dos cavalos, buscando
alguma explicação para aqueles fenômenos. Ao ouvi-lo relatar os ruídos de pés
arrastando chinelos e o som de vozes, ele abanou a cabeça afirmando que naquela
noite ficou acordado até tarde, e disse que não ouviu nem viu nada de anormal,
até porque possuía cães de guarda que alertariam á qualquer movimento de
estranhos na estrada ou mesmo na mata nos arredores. Paulo passou as mãos nos
cabelos e disse. – Minha mulher está apavorada! O que é isto; são fantasmas?
- Oh não! – Claudius respondeu que, como estava
na primavera, aquele som que parecia pessoas falando ao mesmo tempo, eram sapos
e pererecas em período de acasalamento. E quanto ao barulho de
chinelo, certamente eram gambás andando por baixo do assoalho a procura de
comida ou morcegos que entram pelas aberturas nas cumeeiras do telhado e voam
próximos ao teto alto, por isto não os viam, mas ele teria a solução. Tirou um
pequeno apito do bolso, o entregou á Paulo e disse: - Isto aqui emite um som
que a gente não consegue ouvir, mas os morcegos e gambás sim e fogem quando
escutam! – Paulo apanhou o apito e soprou. Os cães latiram ao mesmo tempo. –
Está vendo? – sorriu Cláudio. – Quando começar o barulho dos chinelos assopre
com força que os bichos vão sair correndo! – riso – Qual fantasma assombraria
uma casa estalando de nova? – Paulo concordou e agradeceu.
De
volta á vivenda, Clara segurava o apito com desdém. – Mas o que a gente ouviu
foi passos calçados de chinelos por toda a casa e gente falando, e não barulho
de sapos e gambás! – Paulo tomou o apito e disse. – Eu já não tenho tanta
certeza. O que ouvimos foram ruídos e sons do campo que não conhecemos e assim
os associamos a algo familiar. É isto! – Clara olhou-o sem crer. – Vamos
conferir? – afirmou Paulo assoprando o apito. Deu para ouvir o ladrar dos cães
do vizinho ao longe e em seguida um ruído de algo que parecia se arrastar no
chão que deviam ser gambás. Ele apontou para o teto sem tirar o apito da boca
mostrando dois morcegos voando junto ao teto, aparentemente alucinados pelo som
que só eles ouviam. Clara cobriu a cabeça com as mãos enquanto os animais
revoaram pelos cômodos da casa até acharem uma janela aberta para saírem
rápido. Então Paulo tirou o apito da boca: – Viu? Você está assustada á toa! –
Clara aceitou a explicação ainda desconfiada. Na verdade queria ir embora
dali.
O
resto do dia passou tranquilo. Á tarde visitaram Claudius para agradecer e
aproveitaram para uma pequena cavalgada. Convidados á jantar, eles ficaram até
tarde na casa do vizinho. Tudo perfeito. No dia seguinte já tinham programa
certo: um banho na cachoeirinha.
Á
noite Clara estava na cozinha lavando louça enquanto Pablo dormia no quarto.
Paulo se aproximou e deu um cheiro no pescoço da mulher, que se assustou
deixando uma xícara cair: - Droga! – reclamou ao que ele falou: - Calma, é
apenas uma xícara! – ela o encarou: - Paulo, eu acho que a gente devia ir
embora! - ele reagiu: - Ora, Por quê? -
ela respondeu: - Essa casa me dá arrepios e aquelas vozes pareciam dizer “vão
embora”! – ele retrucou: - Ah Clara, por favor, eram só sapos! – ela prosseguiu.
– Seja lá o que for eu não estou gostando! – Paulo abanou a cabeça e respondeu
impaciente: - Que diabo, Clara! Eu arranjei esta casa pra gente passar um fim
de semana gostoso, e parece que nada é bom para você! – ela se esquivou irônica:
- Esse lugar é estranho, mas não se pode falar nada, porque foi agrado do
doutor Flávio Levi! – ele replicou: - O que você está querendo dizer com isto? – ela
disparou: - Que você é um puxa saco do patrão! – nisto o som dos chinelos e
murmúrios reiniciaram e ela ameaçou: - Se você quer ficar, eu vou embora! -
exaltado Paulo respondeu: - Você vai ficar aqui! - e colocou o apito na boca,
mas o barulho não parava, parecendo ecoar por toda a casa quase como se fossem
passos de muitas pessoas calçando chinelos, fazendo Pablo acordar chorando. O
casal não o ouviu e continuou discutindo enquanto o barulho se tornava um
sapateado macabro consonante á ladainha sombria de vozes cada vez mais intensa.
Meses depois, um Mercedes-Benz prata parava
diante da casa. Saiu um homem: era Flávio Levi, dono da vivenda. Uma mulher
saiu também: sua esposa Mara que falou. – É tão linda esta casa que nós
construímos querido. O pessoal da revista de arquitetura quer fazer uma
matéria! – Flávio sorriu largo e disse. – Ela está pronta há dois anos e só
agora nós podemos passar um fim de semana aqui com ela prontinha! - o casal
entrou e Mara perguntou: – Você trocou os móveis do quarto? – ele respondeu: -
Sim. Coisa mais triste o filhinho de Paulo e Clara ter fraturado o crânio ao
cair da cama e morrido. - Mara o confortou: - Não temos culpa da negligência
dos pais do garoto, amor! - Flavio tentou amenizar. – Não devemos julgar. - Sara
insistiu. – Mas isso agora acabou. Daqui em diante nada de emprestar a casa á
ninguém! Só a gente vem aqui. – ele concordou e afirmou: - eu queria ter
trocado todos os móveis da casa! – Mara discordou. – Que absurdo, claro que
não! Deu muito trabalho garimpar esses móveis em antiquários, principalmente
estes que vieram da Europa! – falava Mara alisando o tempo de uma papeleira.
Flávio deu de ombros e andou pelo corredor observando a galeria de fotos
antigas. – Onde você conseguiu esses retratos? – Mara se aproximou respondendo:
- Vieram junto com os móveis. – Flávio
olhava-os: pareciam fotos de família com muita gente, todos sérios e calçados
de chinelos. Havia um quadro torto de uma mulher loira com olhar severo e
uniforme. Ele o corrigiu e observou com atenção: - Tem um negocio escrito. –
chegou mais perto. – “Irma Grese,...
Bergen Belsen, 1939, konzentra... Lager...”
está borrado, não dá para ler direito, parece alemão. – Mara explicou: – O
antiquário falou que é o nome de um hotel na Alemanha e essa mulher devia ser
camareira, ou sei lá! – ele fez um muxoxo, dizendo. – Livre-se desses retratos;
são feios! – ela discordou. – De jeito nenhum, são relíquias! – ele olhou de
novo o retrato e pensou: - Berger Belsen... Engraçado, esse nome não me é
estranho. - Mara respondeu: - A próxima vez que formos a Europa, vamos lá! Quem
sabe esse hotel ainda existe? - ele deu de ombros e seguiu ao quarto junto á
esposa.
Dois
dias depois, homens do corpo de bombeiros faziam rescaldo no incêndio que destruiu
a vivenda, matando Mara e Flávio carbonizados. Não havia explicação para o
sinistro, apenas a explicação de Claudius, o vizinho, de que a casa teria
problemas elétricos, mas Flávio não o ouviu. - Provavelmente foi um curto
circuito! – concluíram.
Um
ano depois, Claudius adquiriu a propriedade dos filhos do casal Levi, que,
traumatizados, se desfizeram dela. Satisfeito, ele enterrou restos de móveis e
fotografias antigas retiradas dos escombros. Então abanou a cabeça ao dizer: - Que
pena que o doutor Flávio Levi não prestou atenção aos detalhes e se esqueceu da
própria história do seu povo! – riu: - Burguesinho ignorante; vai ver que nem sabia
que era judeu! Mas tudo isto poderia ser evitado se tivesse me vendido a
propriedade quando eu quis! – então abriu uma pasta com a escritura de posse do
novo proprietário: Claudius Hermann Grese, e sorriu ao dizer: – Obrigado, vovó!
– e fez a saudação nazista.
Fim
show!!!
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