sexta-feira, 15 de novembro de 2019

"existem lugares assombrados pelo mistério que os cerca!"


Há muita gente que de bom grado enfrentaria todos os mistérios e ameaças sobrenaturais em troca de um teto onde passar as noites de chuvas intempestivas. No entanto, aquele está abandonado pelo capricho de uma cigana que lhe vaticinou o abandono.”
Existem lugares que não são assombrados por fantasmas ou fenômenos poltergeist, mas pelo próprio mistério que suas paredes encerram, e o solar que por muitos anos ocupou o número 149 da Rua Oswaldo Cruz, bairro do Flamengo no Rio de janeiro, pode ser um bom exemplo disto.
Construído em 1919, o palacete obedecia ao estilo Neogótico, uma variação do Ecletismo que refletia a fascinação pela Idade Média que permeou a arquitetura e as artes a partir da segunda metade do século XIX, até meados do século XX. O arquiteto Augustin Pugin (1813 – 1852) defendia o que denominou lógica “funcional” da arquitetura medieval, enquanto John Ruskin (1819 – 1900) via na estética e na artesanía da arquitetura da Idade Média uma espécie de resgate a uma beleza suprema e espiritual.
Segundo a historiadora de Arte Giovanna Rosso Del Brenna, o estilo Neogótico no Brasil se deu por uma necessidade de criar um ambiente repleto de significações culturais que remeteriam á alta cultura portuguesa, tanto que o estilo era denominado “Neomanuelino” em alusão á arquitetura dos tempos do rei D. Manuel (1495 – 1521). Ou seja, um resgate que relembrava a grandeza dos antigos colonizadores do Brasil.
O palacete do Flamengo, ou Villa Martinelli, foi construído pelo Comendador Giuseppe Martinelli (São Donato de Luca 1870 – Rio de Janeiro 1946). Empresário e armador, ele imigrou da Itália para o Brasil em 1893, estabelecendo-se em São Paulo e nas décadas seguintes formou uma das maiores fortunas do Brasil á época. Foi dele a idealização e construção do Edifício Martinelli (O projeto foi do arquiteto húngaro William Fillinger da Academia de Belas Artes de Viena), no Centro de São Paulo, em 1924 que com seus trinta andares deteve o título de prédio mais alto da America Latina por anos. Inclusive, o Comendador se mudou com a família para um apartamento cobertura do edifício em 1929.
Voltando ao palacete e seus mistérios, um deles poderia ser a razão de um imigrante italiano escolher um estilo histórico português para sua casa ao invés de um estilo de sua terra natal, como o Fiorentino. Contudo, isto pode ter sido uma estratégia para ser aceito na sociedade carioca porque o Rio de janeiro, então Capital Federal, possuía uma grande colônia portuguesa, e ao homenagear a cultura lusitana através da chamada “mais pública das artes”, a arquitetura, seria uma forma de se integrar á elite carioca e á esfera do poder. Como referências á Itália, ele mandou erigir uma réplica da basílica de Luca nos fundos do palacete, e teria adquirido diversas obras de arte após a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) aproveitando a crise que se instaurou na Itália no pós-guerra, que incluía Michelangelo, Antonello da Messina, Giotto, Sandro Boticelli, Pietro Perugino, Leonardo DaVinci, Raphael e Giovanni Bellini.  
Contudo, a Villa não se notabilizou pela arquitetura ou a coleção de arte do seu dono, mas por uma lenda e um escândalo. Diziam que haveria uma maldição, proferida por uma cigana, de que a construção do palacete nunca deveria ser concluída sob o risco de infortúnios do destino ao seu dono. Consta que sempre havia algum acréscimo ou obra no solar, que não terminaram nem após a morte do Comendador em 1946. 
Mas ao conhecermos a história mais de perto, parece que o esforço para fugir á maldição da cigana não surtiu efeito. Giuseppe Martinelli e sua família teriam vivido no solar até 1929, quando se mudaram para o apartamento na cobertura do Edifício Martinelli, em São Paulo, recém-concluído. Porém, apesar de ter sido considerado um marco na arquitetura paulistana, logo se tornando um dos cartões postais da cidade, o prédio pode ter sido um malogro enquanto empreendimento imobiliário, pois no dia 24 de outubro de 1929 ocorreu o Crash da Bolsa de Valores de Nova York, a chamada “quinta-feira negra”, que levou a um período de depressão econômica na década de 1930 com efeitos imediatos nas exportações de café, que basicamente era o único produto de exportação brasileiro.  As atividades do Comendador Martinelli incluíam exportações através da firma Lloyd Nacional, que com o colapso nas exportações de café sentiu os efeitos da crise. Ele também esperava que a elite paulistana se encantasse com a arquitetura e o arrojo do projeto do Edifício Martinelli e adquirissem suas salas e apartamentos, o que não ocorreu.  Assim, em 1934, premido por problemas financeiros, que incluíam dívidas ainda da construção do edifício, o Comendador teve que vendê-lo ao Governo Italiano. 
É possível imaginar-se o golpe que isto pode ter representado, não só financeiramente, como no prestígio do Comendador, que voltou a viver no Palacete da Rua Oswaldo cruz com sua família; mas teria se recuperado e continuou sendo uma das maiores fortunas do Brasil.
Porém, outros revezem aguardavam-no adiante.
Simpatizante de Benito Mussolini (Predappio, 1883 – Mezzegra, 1945) líder do Partido Nacional Fascista e chefe da então República Social italiana, Martinelli chegou a convidá-lo para a inauguração da capela erigida nas dependências do palacete e o governo italiano teria enviado representantes. Esta opção ideológica encontrava eco no Brasil através de intelectuais como o escritor Plínio Salgado (São bento do Sapucaí 1895 – São Paulo 1975), criador do “Partido Integralista”, aos moldes fascistas, e do próprio governo do Presidente Getúlio Vargas (São Borja 1882 – Rio de Janeiro 1954) no período da ditadura do Estado Novo. Mas os desdobramentos históricos ao início da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1940) levaram o governo Vargas a rever sua posição, rompendo com o chamado “Eixo Roma-Berlin-Tóquio” e com Mussolini.
Como imigrante italiano, o Comendador Martinelli chegou a ter bens confiscados pelo governo á pretexto de serem de “interesse público” em 1943, incluindo sua parte acionária no Lloyd Nacional, que pode ter levado á mais um desprestígio, junto ao poder e á sociedade carioca.
A partir de então vem um período um tanto obscuro na vida pessoal do Comendador que resvalou num escândalo na sociedade carioca.  Ele se casou novamente com Rina Cataldi, trinta anos mais jovem, filha de sua lavadeira, e com ela teve um filho de nome José Benito Martinelli (primeiro sobrenome em homenagem ao ditador italiano). Segundo consta, Rina teve um caso amoroso com o então Deputado Federal Edmundo Barreto Pinto (Vassouras 1900 – 1972), tido como um arrivista que almejava ascensão social. Desgostoso ao ver a esposa vivendo com o amante na Villa, e certamente tentando evitar escândalos, o Comendador passou a ocupar anexos ao palacete no Morro da Viúva ao qual tinha acesso por um túnel que levava á um elevador. Mas o estopim do escândalo ocorreu por conta de uma reportagem veiculada na Revista “O Cruzeiro”, intitulada: “Barreto Pinto sem máscara” em 29 de junho de 1946, onde o parlamentar aparecia apenas de cuecas e fraque nas dependências da Villa com a legenda: “O amigo de Getúlio em trajes para as grandes cerimônias.”, e num dos banheiros “atendendo á telefonemas das vedetes que frequentavam seu boldoir á Avenida Atlântica, na banheira como as estrelas de cinema”. O parlamentar tentou processar os jornalistas David Nasser e Jean Manzon, autores da reportagem por má fé, mas acabou tendo seu mandato cassado por falta de decoro parlamentar; a primeira do Congresso Brasileiro.
Completamente envergonhado pelo escândalo e o ridículo que o episódio gerou, Martinelli teria fechado e abandonado a Villa, se recolhendo aos anexos no Morro da Viúva até falecer aos 76 anos em novembro de 1946, cinco meses após a reportagem de “O Cruzeiro”. Isto levou á especulações se a causa de sua morte teriam sido naturais ou crime, pois só o camalhaço de papéis listando bens do seu espólio pesava trinta quilos!  Mas não havia provas.
Na década de 1970, Sérgio Dourado, então o maior incorporador imobiliário do Rio de Janeiro, comprou a propriedade e demoliu a Villa Martinelli, erigindo no local um condomínio que, no entanto, preservou a capela, réplica da Basílica de Luca, nas suas dependências.
Desaparecia a Villa, mas não sua lenda e seus mistérios.
E assim, como disse a cigana: cumpriu-se a sentença!

Referências Bibliográficas:
BRENNA, Giovana Rosso de, Ecletismo na Arquitetura Brasileira. In FABRIS, Annateresa (org.), São Paulo, Editora Universidade de São Paulo, 1987.
LEMOS, Carlos, Ecletismo na Arquitetura Brasileira. In FABRIS, Annateresa (org.), São Paulo, Editora Universidade de São Paulo, 1987.
PUGIN, Augustin, in ENCICLOPÉDIA Del Modernismo, Barcelona, Ediciones Polígrafa S. A., p. 31, 1983.
RUSKIN, John, in ENCICLOPÉDIA Del Modernismo, Barcelona, Ediciones Polígrafa S. A., p. 31, 1983.
SOLARES e supertições. Revista da Semana, Rio de Janeiro, Cia Editora Americana, ano 47, número 35, p. 48 – 51,  31 de agosto de 1946.
 Sites:
WWW.navioseportos.com
http://www.signoredelbosco.com

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