“Há muita gente que de bom grado enfrentaria
todos os mistérios e ameaças sobrenaturais em troca de um teto onde passar as
noites de chuvas intempestivas. No entanto, aquele está abandonado pelo
capricho de uma cigana que lhe vaticinou o abandono.”
Existem
lugares que não são assombrados por fantasmas ou fenômenos poltergeist, mas
pelo próprio mistério que suas paredes encerram, e o solar que por muitos anos
ocupou o número 149 da Rua Oswaldo Cruz, bairro do Flamengo no Rio de janeiro,
pode ser um bom exemplo disto.
Construído
em 1919, o palacete obedecia ao estilo Neogótico, uma variação do Ecletismo que
refletia a fascinação pela Idade Média que permeou a arquitetura e as artes a
partir da segunda metade do século XIX, até meados do século XX. O arquiteto
Augustin Pugin (1813 – 1852) defendia o que denominou lógica “funcional” da arquitetura medieval,
enquanto John Ruskin (1819 – 1900) via na estética e na artesanía da
arquitetura da Idade Média uma espécie de resgate a uma beleza suprema e
espiritual.
Segundo
a historiadora de Arte Giovanna Rosso Del Brenna, o estilo Neogótico no Brasil
se deu por uma necessidade de criar um ambiente repleto de significações
culturais que remeteriam á alta cultura portuguesa, tanto que o estilo era
denominado “Neomanuelino” em alusão á
arquitetura dos tempos do rei D. Manuel (1495 – 1521). Ou seja, um resgate que
relembrava a grandeza dos antigos colonizadores do Brasil.
O
palacete do Flamengo, ou Villa Martinelli, foi construído pelo Comendador Giuseppe
Martinelli (São Donato de Luca 1870 – Rio de Janeiro 1946). Empresário e
armador, ele imigrou da Itália para o Brasil em 1893, estabelecendo-se em São
Paulo e nas décadas seguintes formou uma das maiores fortunas do Brasil á época.
Foi dele a idealização e construção do Edifício Martinelli (O
projeto foi do arquiteto húngaro William Fillinger da Academia de Belas Artes
de Viena), no Centro de São Paulo, em 1924 que com seus trinta andares
deteve o título de prédio mais alto da America Latina por anos. Inclusive, o
Comendador se mudou com a família para um apartamento cobertura do edifício em
1929.
Voltando
ao palacete e seus mistérios, um deles poderia ser a razão de um imigrante
italiano escolher um estilo histórico português para sua casa ao invés de um
estilo de sua terra natal, como o Fiorentino. Contudo, isto pode ter sido uma
estratégia para ser aceito na sociedade carioca porque o Rio de janeiro, então
Capital Federal, possuía uma grande colônia portuguesa, e ao homenagear a cultura
lusitana através da chamada “mais pública
das artes”, a arquitetura, seria uma forma de se integrar á elite carioca e
á esfera do poder. Como referências á Itália, ele mandou erigir uma réplica da
basílica de Luca nos fundos do palacete, e teria adquirido diversas obras de
arte após a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) aproveitando a crise que se
instaurou na Itália no pós-guerra, que incluía Michelangelo, Antonello
da Messina, Giotto, Sandro Boticelli, Pietro Perugino, Leonardo DaVinci,
Raphael e Giovanni Bellini.
Contudo, a Villa não se
notabilizou pela arquitetura ou a coleção de arte do seu dono, mas por uma
lenda e um escândalo. Diziam que haveria uma maldição, proferida por uma
cigana, de que a construção do palacete nunca deveria ser concluída sob o risco
de infortúnios do destino ao seu dono. Consta que sempre havia algum acréscimo
ou obra no solar, que não terminaram nem após a morte do Comendador em
1946.
Mas ao conhecermos a história
mais de perto, parece que o esforço para fugir á maldição da cigana não surtiu
efeito. Giuseppe Martinelli e sua família teriam vivido no solar até 1929,
quando se mudaram para o apartamento na cobertura do Edifício Martinelli, em
São Paulo, recém-concluído. Porém, apesar de ter sido considerado um marco na
arquitetura paulistana, logo se tornando um dos cartões postais da cidade, o
prédio pode ter sido um malogro enquanto empreendimento imobiliário, pois no
dia 24 de outubro de 1929 ocorreu o Crash da Bolsa de Valores de Nova York, a chamada
“quinta-feira negra”, que levou a um
período de depressão econômica na década de 1930 com efeitos imediatos nas exportações
de café, que basicamente era o único produto de exportação brasileiro. As atividades do Comendador Martinelli
incluíam exportações através da firma Lloyd Nacional, que com o colapso nas
exportações de café sentiu os efeitos da crise. Ele também esperava que a elite
paulistana se encantasse com a arquitetura e o arrojo do projeto do Edifício
Martinelli e adquirissem suas salas e apartamentos, o que não ocorreu. Assim, em 1934, premido por problemas
financeiros, que incluíam dívidas ainda da construção do edifício, o Comendador
teve que vendê-lo ao Governo Italiano.
É possível imaginar-se o golpe
que isto pode ter representado, não só financeiramente, como no prestígio do
Comendador, que voltou a viver no Palacete da Rua Oswaldo cruz com sua família;
mas teria se recuperado e continuou sendo uma das maiores fortunas do Brasil.
Porém, outros revezem aguardavam-no
adiante.
Simpatizante de Benito Mussolini
(Predappio, 1883 – Mezzegra, 1945) líder do Partido Nacional Fascista e chefe
da então República Social italiana, Martinelli chegou a convidá-lo para a
inauguração da capela erigida nas dependências do palacete e o governo italiano
teria enviado representantes. Esta opção ideológica encontrava eco no Brasil
através de intelectuais como o escritor Plínio Salgado (São bento do Sapucaí
1895 – São Paulo 1975), criador do “Partido
Integralista”, aos moldes fascistas, e do próprio governo do Presidente
Getúlio Vargas (São Borja 1882 – Rio de Janeiro 1954) no período da ditadura do
Estado Novo. Mas os desdobramentos históricos ao início da Segunda Guerra
Mundial (1939 – 1940) levaram o governo Vargas a rever sua posição, rompendo
com o chamado “Eixo Roma-Berlin-Tóquio”
e com Mussolini.
Como imigrante italiano, o
Comendador Martinelli chegou a ter bens confiscados pelo governo á pretexto de
serem de “interesse público” em 1943,
incluindo sua parte acionária no Lloyd Nacional, que pode ter levado á mais um
desprestígio, junto ao poder e á sociedade carioca.
A partir de então vem um período
um tanto obscuro na vida pessoal do Comendador que resvalou num escândalo na
sociedade carioca. Ele se casou novamente
com Rina Cataldi, trinta anos mais jovem, filha de sua lavadeira, e com ela
teve um filho de nome José Benito Martinelli (primeiro sobrenome em homenagem
ao ditador italiano). Segundo consta, Rina teve um caso amoroso com o então
Deputado Federal Edmundo Barreto Pinto (Vassouras 1900 – 1972), tido como um
arrivista que almejava ascensão social. Desgostoso ao ver a esposa vivendo com
o amante na Villa, e certamente tentando evitar escândalos, o Comendador passou
a ocupar anexos ao palacete no Morro da Viúva ao qual tinha acesso por um túnel
que levava á um elevador. Mas o estopim do escândalo ocorreu por conta de uma
reportagem veiculada na Revista “O Cruzeiro”, intitulada: “Barreto Pinto sem máscara” em 29 de junho de 1946, onde o
parlamentar aparecia apenas de cuecas e fraque nas dependências da Villa com a
legenda: “O amigo de Getúlio em trajes
para as grandes cerimônias.”, e num dos banheiros “atendendo á telefonemas das vedetes que frequentavam seu boldoir á
Avenida Atlântica, na banheira como as estrelas de cinema”. O parlamentar
tentou processar os jornalistas David Nasser e Jean Manzon, autores da
reportagem por má fé, mas acabou tendo seu mandato cassado por falta de decoro
parlamentar; a primeira do Congresso Brasileiro.
Completamente envergonhado pelo
escândalo e o ridículo que o episódio gerou, Martinelli teria fechado e
abandonado a Villa, se recolhendo aos anexos no Morro da Viúva até falecer aos
76 anos em novembro de 1946, cinco meses após a reportagem de “O Cruzeiro”. Isto levou á especulações
se a causa de sua morte teriam sido naturais ou crime, pois só o camalhaço de
papéis listando bens do seu espólio pesava trinta quilos! Mas não havia provas.
Na década de 1970, Sérgio
Dourado, então o maior incorporador imobiliário do Rio de Janeiro, comprou a
propriedade e demoliu a Villa Martinelli, erigindo no local um condomínio que,
no entanto, preservou a capela, réplica da Basílica de Luca, nas suas
dependências.
Desaparecia a Villa, mas não sua
lenda e seus mistérios.
E assim, como disse a cigana:
cumpriu-se a sentença!
Referências
Bibliográficas:
BRENNA,
Giovana Rosso de, Ecletismo na
Arquitetura Brasileira. In FABRIS, Annateresa (org.), São Paulo, Editora
Universidade de São Paulo, 1987.
LEMOS,
Carlos, Ecletismo na Arquitetura
Brasileira. In FABRIS, Annateresa (org.), São Paulo, Editora Universidade
de São Paulo, 1987.
PUGIN,
Augustin, in ENCICLOPÉDIA Del Modernismo, Barcelona, Ediciones Polígrafa S. A.,
p. 31, 1983.
RUSKIN,
John, in ENCICLOPÉDIA Del Modernismo, Barcelona, Ediciones Polígrafa S. A., p.
31, 1983.
SOLARES
e supertições. Revista da Semana, Rio de Janeiro, Cia Editora Americana, ano
47, número 35, p. 48 – 51, 31 de agosto
de 1946.
Sites:
WWW.navioseportos.com
http://www.signoredelbosco.com
Muito bom, Ramón!
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