quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

TRATADOS COMO PRÍNCIPES.


 No século V a Gália, na região a oeste do baixo Reno, era habitada pelos povos “Francos” em tribos e reinos cada qual com seu soberano. Numa delas havia um menino príncipe que se chamava Clóvis. Todos os anos ocorriam festejos populares durante três dias quando os habitantes saiam a brincar e dançar nas ruas cantando músicas alegres, com desfiles de carroças e carruagens enfeitadas. Todos podiam participar desses festejos; menos o pequeno Clóvis, que ao solicitar permissão ao seu pai, o rei Quilderico, recebeu uma negativa:
 – Não! É arriscado demais meu filho. Lembra-te que tu serás o futuro soberano deste reino. Assim, tua vida é preciosa demais para correres riscos. Tu entendes?
 – Decerto papai. Tenho ciência disto! – respondeu resignado, e saiu em direção aos aposentos reais. Mas mesmo de lá, ele podia ouvir as músicas, os risos e a alegria dos seus vassalos nas brincadeiras alegres daquele festejo; então abaixava a cabeça e lágrimas lhe rolavam á face.
Os anos passavam e sempre naquela época o jovem príncipe se recolhia aos seus aposentos em silêncio, aparecendo apenas nas ocasiões onde sua presença era indispensável.
- Isto me dilacera o coração! – falava a rainha, que se chamava Basina. – Até temo que ele adoeça.
- E tu pensas que não fico com o peito aos pedaços ao ver nosso filho nesta tristeza durante os três dias de festa? – respondeu o rei, ao que a rainha perguntou: – E se o mandássemos á algum ligar onde não haja este festejo? Talvez á um monastério. 
- Acho pior! Conhecendo a firmeza do seu espírito, ele pode achar que o consideramos um fraco! – se levantou do trono. – Tomei uma decisão: todos os anos alguns súditos e uns tantos vassalos reclamam da confusão e da balbúrdia desses três dias; e isto me dá respaldo para abolir esta festa por decreto real!
- Por Deus; isto é mesmo necessário? – perguntou a rainha.
- Eu não vejo outra saída: vou convocar os conselheiros  para decidirmos acabar com estes festejos!
Uma das aias do castelo, de nome Anne, ouvia a conversa e não se conteve: - Majestade! – o rei e a rainha a olharam. – Perdão pela ousadia; mas peço licença para dar minha humilde opinião.
O rei lhe lançou um olhar frio e disse: - Em que mundo nós estamos onde uma reles aia se intromete nos assuntos reais?
A rainha sugeriu: - Vamos ouvi-la! Que mal pode fazer?
Quilderico se aproximou de Anne dizendo: - Está bem! Se mademoiselle já foi ousada para nos interromper, que sejas mais ainda e nos dê sua a opinião!
Anne engoliu a seco na certeza de estar a um passo do calabouço, mas respondeu.
- Majestades: Com todo respeito, eu não acho isto justo. Este é um festejo aguardado por todos, e há alguns que até se preparam por todo ano, tecendo fantasias com ricos bordados; elaborando enfeites e alegorias para suas carroças e cavalos! – temerosa, ela se aproximou. – Muito respeitosamente, é claro: eu sei que alguns nobres da corte participam dos festejos disfarçados com fantasias iguais aos vassalos!
A rainha levou os dedos aos lábios num riso contido enquanto o rei encarou Anne ao dizer: - Por acaso me tomas por um tonto que não saiba que até meus ministros saem para os festejos com as faces ocultas em máscaras para não serem reconhecidos?
Com coragem ela argumentou: - Majestade; é exatamente isto que estou querendo dizer: por que o príncipe não poderia fazer o mesmo? Poderíamos confeccionar uma fantasia com uma máscara que lhe cubra todo o rosto e cabeça. E para que o príncipe não saia sozinho do castelo sem proteção, o que seria um perigo, poderiam ir alguns guardas, também fantasiados para que ninguém veja que são seus guardiões!
- Chega! – interrompeu o rei: - Não posso permitir tamanha temeridade! Se os súditos descobrirem, será uma vergonha!
A rainha interviu: - Vamos pensar bem: isto pode ser uma boa ideia!
- Como assim, Basina?
- Nosso filho será o futuro soberano deste reino; não achas que seria uma maneira dele ter contato com nossos vassalos, conhecendo-os melhor? E qual ocasião poderia ser mais propícia do que um festejo onde todos saem mascarados? Ele seria apenas mais um aldeão brincando junto á outros.
- Não tens medo que ele acabe se traindo, e revelando sua identidade real? – questionou o rei.
- Ora Quilderico; tu tomas nosso filho por um parvo? Tenho certeza que ele saberá ocultar sua identidade.
O rei colocou o indicador sobre os lábios numa atitude pensativa quando Anne se aproximou:
- Perdão Majestade, mas, para ajudar o príncipe a resguardar sua identidade, eu poderia acompanhá-lo, também disfarçada, como se fosse uma irmã mais velha.
Ele a encarou mais de perto e perguntou: - Mademoiselle não estaria querendo servir-se deste estratagema para poder cair na folia também?
Anne respondeu: - Com todo respeito, Majestade: mas se eu fosse convocada para esta missão, garanto que a cumpriria com toda bravura!
O rei abriu os braços e disse: - Estou vendo que há um complô de mulheres neste castelo! – olhou adiante: - E tu, Clóvis; podes sair de trás da cortina que estou vendo teus pés!
O jovem saiu de trás dos panos e se aproximou. Quiderico falou: - Então, foi tu o mentor desta encenação, meu filho?
- Sim papai.
- E ainda enredou tua mãe e esta aia nesta farsa?
- Mamãe sim,... A aia eu a obriguei.
Anne retrucou: - Não majestade,... Eu fiz por minha própria vontade.
O rei sorriu e disse: - É, meu filho. És astuto na busca pelo que queres, e isto demonstra que tu és estrategista, o que é bom para um futuro soberano. Está bem. Tu sairás nos festejos, guardado por um séquito de guardas, também disfarçados. - olhou novamente Anne: - Mademoiselle: vá pensando numa fantasia para o príncipe!
- Sim, Majestade. – respondeu.
– E confeccione um disfarce para tu também; foi ousada e se arriscou ao calabouço para auxiliar o príncipe. Assim, não creio que haverá irmã mais fiel para reforçar o disfarce!
Anne sorriu e olhou de leve para o príncipe, que retribuiu o sorriso.
 Assim produziram uma fantasia sem tecidos caros ou joias, iguais aos garotos aldeões; e também para Anne e aos guardas mais fiéis, porque devia ser um segredo para toda a corte.  
Fantasiado, o príncipe Clóvis se divertiu como nunca: brincou; dançou; comeu as comidas e bebeu as bebidas preferidas por seu povo, e até cantou canções que debochavam da corte! Depois retornava ao castelo com um largo sorriso; exausto, mas feliz. O rei ficou tão grato que concedeu a Anne um título de nobreza: Baronesa Colombina!
Porém, depois de algum tempo começaram a desconfiar que o próprio príncipe Clóvis comparecesse á festividade disfarçado de tal modo que era impossível reconhecê-lo. Assim, se todo garoto fantasiado de “Clóvis” poderia ser o príncipe, todos deveriam ser tratados como príncipes durante os três dias da folia!
Tempos depois Clóvis chegou ao trono na idade de quinze anos, tornando-se um dos reis mais importantes da história. Seu reinado se iniciou no ano de 493 e terminou no ano de 511 da era Medieval.
O Rei Clóvis I existiu de verdade, e sob seu reinado ocorreu á reunião de todas as tribos Francas com um único governante, ou um só rei. Isto é considerada a fundação da França, como Estado. Foi também o primeiro rei bárbaro á se converter ao Cristianismo e á Igreja Católica, isto por estímulo de sua esposa, Clotilde da Borgonha.

Há algumas lendas que falam que o rei Clóvis saía disfarçado nos festejos populares para saber o que o povo pensava. Pode ser. Quanto á Baronesa Colombina, não há qualquer indicação da sua existência!... Mas não é para isto que servem as licenças poéticas?

FIM.

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