Naqueles
anos dourados, quando o presidente Kubitscheck iniciava seu mandato com a
bandeira do progresso e o Sputnik dava suas primeiras voltas á terra, o chique
era fazer roupas nas modistas como eram designadas as costureiras. O ateliê de
Madame Raymonda ficava no terceiro andar de um distinto prédio comercial no
Centro de Juiz de Fora, e ela acabava marcar a bainha num vestido com a
delicadeza de um violinista, elogiando: – Que tecido maravilhoso; a senhora
teve muito bom gosto! – a freguesa sorriu. Na sala de espera, havia mais duas
senhoras aguardando-a, indicando á prosperidade do seu negócio.
Sua residência ficava numa rua sem saída ao
final da via. Ela não possuía vizinhos próximos, o que lhe garantia muita
privacidade. Aliás, esta era uma das características de Madame Raymonda:
extrema descrição de sua vida particular. Sabia-se apenas que ela vivia sozinha
naquela bela casa em estilo neocolonial com muros altos e uma grande porta de
garagem em madeira pintada de verde musgo.
No
lado oposto havia uma casa modesta com jardim frontal e varanda. Ali vivia uma
adolescente de quatorze anos chamada Sofia, a mais nova de três irmãs. Sua saída á escola coincidia com a de Madame
Raymonda ao ateliê, e ela sempre observava seus trajes que pareciam diretamente
vindos das telas do cinema ou dos figurinos de Alceu Penna nas paginas da
revista “O Cruzeiro”. E ainda havia aquele cabelo negro, digno das propagandas
dos xampus “Silk”, que lhe caía aos ombros em ondas perfeitamente simétricas.
Tão diferente das suas irmãs, sempre metidas em vestidos fora de moda e de cabelos
ressecados emaranhados em grampos e lenços.
Um
dia, Sofia folheava um jornal quando viu anúncio do Ateliê de Madame Raymonda
com o desenho de um vestido assinado pela própria. Então veio a curiosidade de
conhecê-lo.
A
garota inventou compra de material escolar para ir á cidade, e foi fácil encontrar
o ateliê no prédio na Rua Halfeld, pois havia um manequim de corpo inteiro com
uma das criações de Madame Raymonda á recepção. Seus olhos captavam os detalhes
daquela saleta que parecia um cenário de filme; abajures, tapeçarias, um grande
espelho com moldura dourada e um sofá em couro vermelho onde uma senhora
aguardava.
Sofia não entrou, apenas ficou á porta observando,
e em instantes, outra senhora muito elegante e perfumada saiu com um embrulho
ás mãos. - Tudo tão lindo! – pensou; mas
como não daria para ficar contemplando aquele cenário de sonhos o resto do dia,
Sofia teve que voltar para casa.
Uma
noite ela saiu á varanda para ver os vagalumes na primavera, quando ouviu o
ronco de um motor; era um automóvel azul com capota preta que parou diante da
casa de Madame Raymonda. Um homem de terno e chapéu saiu do carro abriu a porta
da garagem entrou com o veículo e tornou a fechá-la. Isto a deixou intrigada,
pois, até onde se sabia Madame Raymonda não era casada! Mas deu de ombros e
voltou aos vagalumes.
As
idas ao ateliê se tornaram constantes á qualquer saída á cidade. Numa tarde, a
recepção estava vazia e Sofia entrou sentindo o leve perfume de lavanda no ar e
vendo sua imagem refletir no belíssimo espelho. Subitamente a porta do ateliê
abriu e Madame Raymonda espiou a saleta: – Olá, você está me esperando? – ela
respondeu: -... Não. Estava só olhando! – e foi saindo ao que a modista
perguntou: - Espere! Eu conheço você; é minha vizinha de frente! – e sorriu: -
Eu vejo você todos os dias seguindo á escola quando venho trabalhar, e percebo
que me olha sempre; por quê?
-
Eu acho a senhora muito elegante!
Ela
riu: - Obrigada querida, é uma obrigação do meu ofício! – e a olhou: - É uma
moça! Quantos anos você tem?
-
Quatorze anos. Vou fazer quinze daqui dois meses!
-
Ah, que coisa linda! Vai ter festa?
-
Só no colégio para as meninas que farão quinze anos este semestre. Mas eu não irei!
-
Por que não?
-
Eu não tenho roupa para ir e não quero passar vergonha!
Raymonda
á olhou um instante, e falou com o dedo indicador nos lábios: - Venha comigo,
querida! - a pegou pela mão e entraram no ateliê. Ela buscou um cabide com um
vestido e o posicionou no corpo de Sofia, dizendo: - Creio que vai servir! Mude
de roupa no provador. – ela retrucou: - Não posso ficar com esse vestido, não
teremos como pagar! – A modista respondeu: - Não falei nada em pagamento! Este
vestido foi encomenda de uma freguesa que, depois de pronto decidiu fazer outro
modelo para a filha! – deu de ombros: - Pagou e não o levou. Hoje nem serve
mais na garota, e é melhor que seja usado do que mofar aqui, não é? – e já foi
buscando fita métrica e alfinetes para os ajustes. Era um vestido em cetim de
seda rosa com bordados no corpete e saia rodada tipo “guarda chuva” com anágua
em tafetá.
Sofia
sorriu e voltou para casa radiante.
Assim
que entrou ela contou para os pais. Dona Neide ficou contente, mas ressalvou: -
Faremos questão de pagar pelo vestido!
Oswaldo,
seu pai confirmou: - Evidente! Ah, vou gostar muito de dançar a valsa com minha
filha caçula!
Agnes,
sua irmã dez anos mais velha protestou: - Essa é boa! Quando eu fiz quinze anos
só teve uma festinha roscofe aqui em casa e nada de vestido novo!
Dona
Neide reagiu: - Aqueles eram outros tempos Agnes; não estávamos em condições de
gastar e fizemos o melhor possível!
Ela respondeu irritadiça: - Sei! Mas mesmo
assim estou achando estranha esta mulher querer dar um vestido á Sofia! Por
acaso você foi lá pedir?
-
Não! Ela me ofereceu por que quis!
-
Estão vendo? – abanou a cabeça: - Acho que não devemos aceitar esse presente
sem mais nem menos!
-
Não! – protestou Sofia: - Eu quero o vestido!
-
Cala a boca, sua pirralha, que você não sabe de nada da vida!
Dona Neide a cortou: - Chega Agnes, pare de
implicar com a vizinha! Amanhã mesmo eu irei ao ateliê dela para ver melhor
esse negócio do vestido.
- Vocês são muito bobos; essa mulher engana
todo mundo, mas a mim, não! – e saiu pisando duro.
Sem se dar por vencida, Agnes começou a buscar
aliados na sua cruzada contra Raymonda. Primeiro no pai, que a princípio gostou
da ideia de dançar valsas com a filha caçula no baile, mas deu certa razão a
filha mais velha. A irmã do meio, Mariana, foi fácil dobrar porque sempre
acompanhava as ideias de Agnes. Em pouco tempo a campanha de antipatia á Raymonda
tomava a vizinhança, pois a achavam esnobe e uma costureira careira demais para
seus bolsos. Começou circular fofocas sobre a sua vida pessoal: uma mulher
solteira que vivia sozinha numa casa de luxo? Uma vizinha reclamou que ela se
insinuava aos homens ao caminhar na rua, e mais de uma vez apanhou o marido
debruçado na janela vendo-a passar. Uma manhã, o acaso se encarregou de criar
mais factoides, pois Raymonda seguia ao trabalho a pé carregando uma sacola que
arrebentou a alça. Um vizinho (homem casado) ajudou-a, e isto bastou para
insurgir uma onda de veneno contra a destruidora de lares, que sempre retornava
á casa tarde da noite num carro de luxo, um Thunderbird conversível, com um
homem.
Uma
madrugada alguém atirou uma pedra na janela da casa de Raymonda, que apenas
mandou trocar o vidro sem emitir comentários.
Agnes insistia para a mãe recusar o presente,
mas Dona Neide se mostrava irredutível: Sofia teria sua noite de debutante!
Numa
tarde a garota estava na sala estudando e escutou Agnes conversando com as
vizinhas e planejando uma espécie de emboscada para Raymonda á porta de sua
casa quando retornasse de carro. Elas se colocariam diante da porta da garagem,
impedindo-os de entrar, para revelar a identidade do homem misterioso,
certamente o amante que bancava sua vida de luxo, e devia ser um homem casado!
Sofia
se assustou e correu ao ateliê para alertá-la.
Raymonda
ouviu tudo em silêncio, apenas abanando a cabeça em desaprovação. Ao final,
Sofia falou: - Elas viram a senhora chegando á sua casa de carro, com um
homem,... Eu também vi esse homem, mas acho que ninguém tem nada com isto!... –
ela interrompeu-a, e disse. – Sim, mas as pessoas pensam o contrário! – apanhou
um embrulho amarelo com laço rosa: - Este é o seu vestido, querida; leve-o! E
não se preocupe comigo. Certas coisas são inevitáveis! – Sofia não compreendeu
bem aquelas palavras, mas obedeceu.
Passava
das 21hs quando o Thunderbird azul e preto chegava á entrada da garagem e foi imediatamente
detido pelas mulheres que fecharam sua passagem. O homem de chapéu saiu e
perguntou: - O que está acontecendo por aqui? – Agnes respondeu: - Nada! Só
estamos preocupadas com a reputação da nossa vizinhança! – ele retrucou: - É
mesmo? Podem me explicar? – uma vizinha espiou dentro do carro e falou: - A tal
da Raymonda nem veio junto! Mandou o homem dela para nos afrontar!
O
homem riu e disse: - Não! Ela não mandou homem nenhum! – e tirou seu chapéu,
revelando seus cabelos negros e ondulados lhe caindo nos ombros. – Eu sou o
homem, e vim de peito aberto para lhes mostrar o que sou: apenas uma mulher que
vive e pensa diferente! – as mulheres fizeram “Ooooh” em uníssono, algumas se
benzendo enquanto Agnes gritou. – Eu não falei que ela era uma esquisita? Uma
mulher que se veste de homem e certamente deve gostar de mulheres. Isto é uma
aberração que afronta á Deus!
Raymonda chegou perto e a desafiou: - Eu sei
do que eu gosto, e você? – riu. – Tu não me enganas nem um minuto,
querida. E se eu me encostar á você
agora?... O-ho! Aposto que vai gostar!
Furiosa
Agnes se afastou, apanhou uma pedra e atirou-a, ferindo Raymonda na testa.
Outras mulheres fizeram o mesmo, obrigando-a buscar refúgio dentro de casa, que
foi apedrejada, assim como seu carro. Chamaram a policia, e isto acabou sendo o
estopim do escândalo da modista que se vestia de homem á noite para beber nos
bares e frequentar cabarés na parte baixa da cidade, como afirmaram várias
testemunhas. Até seu ateliê foi vandalizado.
Era
o fim de Madame Raymonda que não teve alternativa, senão deixar Juiz de Fora.
Da varanda da casa Sofia espiava o Thunderbird
azul repleto de arranhões na lataria levando-a embora quando Agnes chegou
triunfante: - Depravados como esta aí não podem viver perto de pessoas decentes!
– atirou o pacote amarelo ao chão: o vestido de Sofia estava todo retalhado á
tesouradas: - Ás vezes isto ainda serve como estopa! – falou com ar de deboche.
Furiosa, Sofia voou em Agnes, puxando-lhe o cabelo e as duas se engalfinharam.
Dona Neide chegou para apartá-las: - Chega, parem com isto!
-
Olha o que ela fez mãe! – falou Sofia chorando e mostrando os trapos.
-
Essa garota boba ficou indo no antro daquela esquisita todo dia mãe! – bradou
Agnes apontando-lhe o dedo. – Vai ver que aconteciam coisas lá que a gente nem
sabia!
Ao
ouvir isto a mãe lhe deu dois bofetões no rosto: - Cala essa boca sua burra! –
sacudindo-a: - A gente tem é que torcer para esse veneno não se voltar contra
nós! – e arrastou-a para dentro de casa debaixo de tapas.
Sofia
ficou chorando e segurado os retalhos do vestido junto ao peito enquanto
Mariana observava de longe.
Mas
Dona Neide estava certa. Inconsequente, Mariana contou ás colegas de colégio
que sua irmã frequentava o ateliê de Madame Raymonda todos os dias, e tinha
ganhado um vestido novo.
Numa
manhã Sofia chegava ao colégio e seus colegas foram se afastando com cochichos
e risinhos: - É esta aí mãe! – ouviu alguém falar, ao que a mãe respondeu: -
Não quero que você ande com ela!
No
recreio Sofia acabou brigando com uma colega. Dona Neide foi chamada á
secretaria e recebeu repreensões por ter permitido que a filha frequentasse e
até ganhasse presentes de uma pervertida.
Os
jornais viram uma chance de espichar a história, e saiu uma matéria sobre o
escândalo da garota seduzida pela costureira lésbica, sem citar nomes, mas
todos sabiam que era Sofia. Até Oswaldo teve problemas no trabalho por conta de
comentários maldosos de colegas e do patrão. A família foi assediada pela
imprensa e estigmatizada por vizinhos e amigos a tal ponto que não tiveram
outra coisa a fazer senão se mudarem de Juiz de Fora. Agnes se desligou da
família permanecendo na cidade e foi viver sozinha num bairro afastado na
periferia.
Foi
um trauma para Sofia, que a partir daquele momento entendeu que os chamados
“anos dourados” eram apenas folheados á ouro numa camada tão fina, que bastava
um leve risco para rompê-la mostrando sua base em metal barato, corroído de
preconceitos.
Passaram-se muitos anos, décadas, e Sofia vivia
no Rio de Janeiro. Tornou-se uma advogada especialista em questões de
intolerância racial ou de gênero. Era divorciada e tinha dois filhos. Mariana
continuou sendo a “maria-vai-com-as-outras” de sempre. Agnes não se casou, e
entrava e saía das mais variadas religiões e seitas de todos os matizes em
busca algo que nunca encontrou. As três irmãs se encontravam apenas nas festas
de fim de ano onde mantinham atitudes amistosas para não aborrecer os pais
idosos. Ainda havia muitas cicatrizes!
Sofia
nunca mais ouviu falar de Madame Raymonda. Procurou-a nas redes sociais, mas
como não sabia se aquele era seu nome de fato ou um pseudônimo, suas pesquisas
nunca chegavam á uma resposta coesa. Mesmo depois de tantos anos sentia-se
culpada pelo ocorrido. Talvez se nunca tivesse dado vazão á curiosidade em
torno da modista, se aproximando, nada daquilo tivesse acontecido!
Uma
manhã ela folheava o jornal quando a encontrou sem querer, nos obituários: “Raimunda Einsenman (Madame Raymonda)”.
O sepultamento ocorreria naquela mesma manhã no Cemitério do Caju, zona
portuária do Rio. Sofia nem perdeu tempo; pegou as chaves do carro e seguiu á
capela onde o corpo estava sendo velado.
Ao
chegar, entrou com cerimônia, como que pedindo perdão por algo tão distante
quanto presente. Aproximou-se da urna e hesitou um pouco em fitar a face do
cadáver; até que a olhou. Era ela mesma, mais enrugada, porém com a expressão
plácida da sua memória. O que dizer? Fazer uma oração? Pensou. Havia um homem
de cabelos grisalhos ao lado do caixão, que Sofia ouviu se apresentar como o
filho de Madame Raymonda. Mais uma vez a curiosidade tomou as rédeas, e Sofia
se aproximou: - Com licença,... – ele se virou com olhos vermelhos: - Sim?
Ela
o cumprimentou: - Meus sentimentos. Eu a conhecia,... Há muito tempo! Era sua
mãe?
-
Sim! Mãe adotiva. – ele sorriu e falou com sotaque italiano: - Eu tive duas
mães, e agora estão as duas no céu. – aproximou-se. – Era um casal homoafetivo
como se diz hoje... Mas foi bem mais que afeto: foi um lar com muito amor! –
suspirou. – Vivíamos na Toscana, mas mamãe fez questão que a trouxesse de volta.
Ela queria morrer no solo brasileiro! Ah,... Mamãe foi grande em tudo! Era
estilista, sabia que trabalhou no ateliê de Gianni Versace? – alguém o chamou:
-... Acho que é a hora do sepultamento. Com licença,... Como é o nome da
senhora?
-
Sofia
-
Oh,... – olhou para frente e pensou um pouco: - Mamãe falava de uma menina
chamada Sofia; era a senhora? – mas ao se virar, ela já havia se retirado.
Ao
chegar á sua casa, Sofia foi direto ao armário, buscando uma caixa onde guardou
os retalhos do vestido de cetim rosa por todos aqueles anos; e suspirou
aliviada. Então apanhou uma sacola de lixo, pois finalmente poderia sepultar
sua culpa junto á aqueles trapos.
FIM.
Mais uma vez o "pré-conceito" destruindo vidas!
ResponderExcluirMuito bom conto, Ramon!!!